O valor do homem na obra O ente e a essência de Santo Tomás de Aquino
O valor do homem na obra O ente e a essência de Santo Tomás de Aquino
Resumo: No
relacionamento humano frequentemente certos homens são tratados a partir das
características externas do seu ser, e isso equivale muitas vezes a
discriminações. Isso acontece por adotar-se uma visão superficial, não
aprofundada, sobre a aparência externa de uma pessoa. Mas o ser do ente humano
manifesta e exige por natureza um valor único, porque tal valor está na
essência do seu ser, igual a todo homem por participar de uma mesma espécie.
Por essa razão, deve-se respeitar e valorizar a dignidade de todo homem, sem
importar a sua situação cultural, racial, numa palavra, sua aparência externa.
Palavras-chaves:
Ente e essência; discriminação; sustância; acidente;
valor da pessoa humana.
Sumário: Introdução 1. O homem em santo Tomás de Aquino. 1. 1. Contexto
filosófico de S. Tomás de Aquino. 1.2 O homem como ser composto de corpo e
alma. 13. Ser homem a partir da essência e não dos acidentes. 2. O valor do
homem. Conclusão. Referências.
Introdução
O mundo do relacionamento
entre seres humanos é complexo e é nessa complexidade que podemos destacar
alguns comportamentos contrários à construção de relacionamento social positivo,
como a discriminação racial ou étnica, desprezo as pessoas por apresentarem
certas diferencias externas ou físicas, que na linguagem filosófica de S. Tomás
de Aquino são chamadas de acidentes, ou seja, acréscimos agregados ao ser
essencial do homem, que não o modificam substancialmente.
Por isso, este
trabalho académico tem por objeto a noção do homem em Santo Tomás de Aquino,
oferecendo uma reflexão sobre seu valor intrínseco. Nele tenta-se justificar a
insuficiência do fundamento dos tratos discriminatórios, utilizando como
referência as noções básicas da filosofia de S. Tomás de Aquino, contidas na
sua obra O ente e a essência, para
buscar a definição do que é o homem, de uma forma mais profunda e especulativa.
A pretensão deste artigo é de colocar uma tentativa de compromisso maior sobre
o valor do ser humano, partindo da necessidade de profundar no conhecimento de
tal ser, de forma que o tratamento de uma pessoa não deva ser condicionado por
sua aparência ou por suas diferenças externas (acidentes), mas pelo fato de ela
ser merecedora de respeito por formar parte da espécie humana.
O método utilizado é simples. O trabalho tem por base
várias obras que foram consultadas como referência. Por isso, no percorrer da
sua leitura poder-se-á perceber um processo de raciocínio adequado para entender
o objetivo pelo qual foi feito o artigo.
1. O homem em santo Tomás de Aquino.
1.2 Contexto
filosófico de S. Tomás de Aquino
É
importante, para a definição do homem em Tomás de Aquino, conhecer o contexto
temporal e filosófico que se vivia na época deste filósofo. Assim pois, a
preocupação filosófica se voltava entorno do problema dos universais, que viera
desenvolvendo-se por volta dos séculos XI, XII e XIII (REALE; ANTISERI, 1990).
Essa época cronológica é mais conhecida pela História Universal com o nome de
Época Medieval, e a nominação que se dá aos transcursos das discussões
filosófica desenvolvidas nesse tempo é conhecido como Período da Escolástica
(porque os debates filosóficos se realizavam nas universidades – escola) (REALE; ANTISERI, 1990).
A
conceição do homem não podia ser unitária, devido às diferentes tradições
antropológicas que estavam presentes nesse momento; a filosofia grega, a
Sagrada Escritura e os movimentos filosóficos-teológicos da Patrística (SGANZERLA; VALVERDE;
FALBRETTI, 2012). Era evidente pois que o homem era visto a partir de
ângulos diferentes, que até alguns não tinham bases fundamentais suficientes
(ou eram distintas) que sustentassem a conceição clara sobre homem. Dessa
maneira, a questão sobre o ser humano se fazia em vista de achar uma
conciliação desses pontos de vistas antropológicos.
Tomás
de Aquino, seguindo uma linha aristotélica – que então viera ser a novidade da
filosofia – pretende abordar não só os assuntos filosóficos e antropológicos,
mas, entrando no campo da teologia também, procurou resolver o problema dos
universais, para responder aos conflitos intelectuais e antropológicos desse
momento crítico para a história da filosofia. Interessa-nos, no entanto, apenas
a conceição do homem deste filósofo.
1.3 O homem como ser composto de corpo e alma
A
alma para S. Tomás de Aquino não constitui uma parte que seja separada do
corpo, mas como algo que dá o ato de ser do homem; isto não significa tampouco
algo acrescido ao corpo, senão a alma é inerente a ele, de forma que aconteça a
vida na pessoa. É um princípio que faz com que o homem se manifeste como ser
que tem vida. Pode-se entende-lo melhor com a afirmação direta do autor ao
seguir: a alma é “o primeiro princípio da vida nas coisas, pois denominamos
viventes as coisas animadas e inanimadas aquelas destituídas de vida”
(apud SGANZERLA; VALVERDE; FALBRETTI, 2012, p. 43).
Como
S. Tomás, como já foi dito, é de uma linha aristotélica, ele está de acordo com
Aristóteles de dizer que o homem é um ‘animal racional’. Na verdade, para Tomás
– como também para Aristóteles – a parte racional é a alma e a parte animal, o
corpo. Por essa alma o homem pertence a categoria dos seres imateriais, mas,
por outro lado, por estar unida essencialmente ao corpo ela é considerada como simples intelecto capaz de conhecer.
Assim o homem é um ser que “se apresenta como um composto essencial de matéria
e forma” (SGANZERLA; VALVERDE; FALBRETTI, 2012, p. 43).
Na obra O Ente e
a Essência, Tomás de Aquino afirma a existência de seres compostos cuja
essência para o intelecto é mais fáceis de ser conhecida devido a que ela é
constituída de forma e matéria. Essa forma, no homem, vem a ser a sua alma e é
o componente essencial no ente encarregado pelas atitudes vitais
característicos dos seres animados.
Assim vê-se seguidamente:
Esta nossa exposição deve começar tratando das
substancias compostas, para que, ao ser iniciada pelas coisas mais fáceis, ela
seja mais convenientemente desenvolvida [...]. Nas substancias compostas, a
matéria e a forma são conhecidas, como o são, no homem, a alma e o corpo
(AQUINO, 1981, p. 66).
Está claro que a
composição da forma e da matéria constitui a essência da substância composta,
neste caso, refere-se ao homem. Esclarece-se esse ponto dizendo que “[...] a
essência compreende a matéria e a forma” ou, mais nitidamente, “[...] a
essência significa aquilo que se compõe de matéria e forma” (AQUINO, 1981, p.
66).
1.4 Ser homem a partir da essência e não dos acidentes
A partir da definição da alma, deveu ser necessário
que esta exposição chegue a desenvolver o problema antropológico em S. Tomás de
Aquino, que parte da noção de que o homem é composto de alma e corpo, e que
esta composição é a união essencial das substâncias alma e corpo (TOMÁS DE
AQUINO, 1981).
Mas, agora, convém acentuar que a existência de
diferenças físicas entre os seres humanos, que para a experiência dos sentidos
são mais fáceis de conceber do que a constituição essencial desse ser, pode
fazer com que, à primeira experiência, se conceba o homem pelo seu aspecto
físico e externo e de aí concluir com uma definição errada do o homem. De fato,
o intelecto não tem a perfeição no conhecimento de uma coisa que se lhe
apresente como algo novo, sem aprofunda-la. Assim, consequentemente, dar-se-ia
a pretensão de chegar a determinar que existem “várias” espécies de homens, e,
seguidamente, daria origem ao surgimento de discriminações. A discriminação
nasce, de fato, desde o preconceito, que é uma deficiência da noção verdadeira,
preconcebida, a respeito a uma pessoa (SANTA CATARINA, 2009).
Por isso, para uma definição mais certa,
deve-se fazer uma indagação mais profunda sobre o indivíduo humano, partindo
não do aspecto externo, mas indo mais além da exterioridade. S. Tomás, assim o
fez, quando, determinando a definição do que significa ‘essência’, ele afirma:
Deve a essência significar algo comum a todas as
naturezas, mediante as quais os diversos entes são colocados nos diferentes
gêneros e espécies. Assim é que, por exemplo, a humanidade constitui a essência
do homem” (TOMÁS DE AQUINO, 1981, p. 64).
Nessa ‘humanidade’ já entram os homens cuja cor da pele, por exemplo, é
diferente, como ocorre no caso do ‘homem branco’ e/ou o ‘homem negro’. Assim
Tomás garante uma atitude contrária ao preconceito com o qual manifesta-se uma
pretensão de deixar num grau inferior a determinados homens, julgados apenas a
partir de uma visão externa e, em ocasiões, discriminatória.
2. O valor do homem
Determinou-se que, em S. Tomás de Aquino, o homem é
animal racional que somente pode ser denominado homem quando entendido em sua
totalidade, isto é, a composição entre alma e corpo; há uma união intrínseca
entre forma e matéria. Agora é preciso sublinhar os aspectos substanciais e
acidentais do ser do homem, para se resolver a questão do seu valor, de sorte
que fique bem indicado a necessidade do respeito à pessoa humana na sua
dignidade.
A dignidade do ser humano está, de fato, em sua
essência, pois é de aí que se considera no homem uma conceição verdadeira de
seu ser. Por conseguinte, o valor que exige a rejeição da discriminação de uma
pessoa, considerada inferior ou estranha por causa de sua raça, religião, etc.,
está na substância que a compõe, e não, propriamente, nos acidentes.
Como, porém, o ente
considerado de modo absoluto e por primeiro se diz das substâncias,
posteriormente e apenas segundo algum aspecto, dos acidentes, infere-se daí que
a essência está, nas substâncias, própria e verdadeiramente, ao passo que, nos
acidentes, está de certo modo e segundo algum aspecto [...] (AQUINO, 1981,
p. 65).
Partir dos acidentes seria, pois,
partir dos caracteres externos do homem, que são visivelmente diferentes, e,
portanto, haveria preferência na ordem do respeito e da consideração. Logo, a
discriminação e desvalorização contra uma pessoa não vão desaparecer. Assim
pois, os acidentes não devem condicionar o valor do homem.
Tampouco se pode afirmar que a
matéria esteja na definição como algo acrescido à essência [...] tal tipo de
definição é próprio dos acidentes, visto estes não possuírem essência perfeita [...].
Não se pode dizer que a essência significa [...] algo acrescido a matéria e a
forma. Se assim fosse, esse algo seria necessariamente acidente [...]
(AQUINO,1981, p. 66).
Tendo em conta essa consideração com respeito
aos acidentes, é necessária uma visão mais profunda do ser do homem, chegando à
essência dele. Para isso, S. Tomás coloca: [...]“ a coisa é cognoscível pela
sua essência, e é também por ela ordenada na espécie e no gênero” (AQUINO,
1981, p. 66). Daí vale destacar uma vez mais que a constituição do ser do
homem, seu valor como tal, está naquilo que ele é, isto é, na sua essência, a
qual é a composição da forma (alma) e matéria (corpo). Pelo fato de ser homem,
e por esse motivo não pode ser excluído do seu gênero ou espécie, ele tem valor
em si mesmo e, por conseguinte, ele tem direito a ser tratado com dignidade,
sem ser privado dos recursos necessários para a integração social, evitando
assim os tratos de caráter discriminatório, coisa que aconteceria se, pelo
contrário, se dá uma definição do homem a partir dos acidentes, mas isso seria,
como já foi dito, uma definição errada do ser verdadeiro do homem.
Mas
aquilo que o acidente advém é um ente completo em si mesmo [pela composição de
forma e matéria], subsistente no seu ser, ser este que naturalmente precede o
acidente que se lhe é acrescido. Portanto, o acidente acrescido, da sua
conjunção com aquilo a que é acrescido, não causa aquele ser no qual a coisa
subsiste, pelo qual ela é ente por si. (AQUINO, 1981, p. 88).
Por último, vale dizer que as diferenças fisicamente externas entre
homens estão na espécie, porém, não como essência, mas como diferenciação sob a
dimensão dos acidentes. Isso não faz de o homem ser distinto essencialmente dos
seus semelhantes, mas apenas de forma acidental, quer dizer, são diferentes por
aspectos que em nada modifica as substâncias que o compõem, porque são coisas
que no homem podem variar, sem ele deixar de ser homem, como a altura, a gordura,
a cor da pele, o lugar de procedência, etc. Conclui-se assim que a união do acidente com o sujeito, que é o homem,
não constitui por si uma unidade essencial, e, portanto, é evidente que
qualquer homem não deve ser julgado pelos seus acidentes, mas ser considerado
pela sua natureza, na qual se encontra o seu valor verdadeiro, merecendo
respeito e dignidade.
Conclusão
O
relacionamento entre os seres humanos sofre rupturas por causa das
discriminações, produzidas através do preconceito a pessoas por estas
apresentarem caracteres externos diferentes. Com isso o valor que possui o
homem fica condicionado por coisas que são externas a seu ser. Tal
comportamento deve ser evitado no relacionamento social, pois existe só uma a
espécie humana que garante a dignidade a todos por igual.
O
valor do ser humano está no seu ser intrinsecamente, não devendo ser
condicionado a partir dos acidentes que possui, mas da composição da sua
natureza, isto é, sua essência, na qual se encontra sua verdadeira dignidade.
Desse modo é necessário o respeito de todo homem, em oposição às
discriminações.
As
diferenças entre os homens, que são chamados acidentes, estão no ser
constitutivo (neste caso o ser humano), em cuja natureza há um valor único e
inquebrantável, por isso ninguém deve ser excluído ou afastado do direito a um
trato digno e respeitoso.
Referências
AMÉRIO, Franco. História da
Filosofia Antiga e Medieval. Coimbra, Casa do Castelo Editora, 1960.
AQUINO, Tomás. O ente e a
Essência. Tradução de D. Odilão Moura. Rio de Janeiro: Presença, 1981
FRAILE, Guillermo. Historia de la
Filosofia. Vol. I. Madrid, BAC, 1965.
SANTA CATARINA. Secretaria de
Estado da Educação. Michaelis: dicionário
prático da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2009.
REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História
da Filosofia – Antiguidade e Idade Média. Vol I. São Paulo, Paulus, 1990.
SGANZERLA, Anor; VALVERDE, Antonio José Romera; FALBRETTI, Ericson (Orgs.). Natureza
Humana em Movimento: Ensaios de antropologia filosófica. São Paulo:
Paulus, 2012. (Coleção Filosofia).
[1] Aluno do segundo semestre do curso de Filosofia
do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) – Unidade Lorena.
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