O valor do homem na obra O ente e a essência de Santo Tomás de Aquino

O valor do homem na obra O ente e a essência de Santo Tomás de Aquino

Cristian Samuel Gómez Celada[1]

Resumo: No relacionamento humano frequentemente certos homens são tratados a partir das características externas do seu ser, e isso equivale muitas vezes a discriminações. Isso acontece por adotar-se uma visão superficial, não aprofundada, sobre a aparência externa de uma pessoa. Mas o ser do ente humano manifesta e exige por natureza um valor único, porque tal valor está na essência do seu ser, igual a todo homem por participar de uma mesma espécie. Por essa razão, deve-se respeitar e valorizar a dignidade de todo homem, sem importar a sua situação cultural, racial, numa palavra, sua aparência externa.

Palavras-chaves: Ente e essência; discriminação; sustância; acidente; valor da pessoa humana.


Sumário: Introdução 1. O homem em santo Tomás de Aquino. 1. 1. Contexto filosófico de S. Tomás de Aquino. 1.2 O homem como ser composto de corpo e alma. 13. Ser homem a partir da essência e não dos acidentes. 2. O valor do homem. Conclusão. Referências.


Introdução
O mundo do relacionamento entre seres humanos é complexo e é nessa complexidade que podemos destacar alguns comportamentos contrários à construção de relacionamento social positivo, como a discriminação racial ou étnica, desprezo as pessoas por apresentarem certas diferencias externas ou físicas, que na linguagem filosófica de S. Tomás de Aquino são chamadas de acidentes, ou seja, acréscimos agregados ao ser essencial do homem, que não o modificam substancialmente.
Por isso, este trabalho académico tem por objeto a noção do homem em Santo Tomás de Aquino, oferecendo uma reflexão sobre seu valor intrínseco. Nele tenta-se justificar a insuficiência do fundamento dos tratos discriminatórios, utilizando como referência as noções básicas da filosofia de S. Tomás de Aquino, contidas na sua obra O ente e a essência, para buscar a definição do que é o homem, de uma forma mais profunda e especulativa. A pretensão deste artigo é de colocar uma tentativa de compromisso maior sobre o valor do ser humano, partindo da necessidade de profundar no conhecimento de tal ser, de forma que o tratamento de uma pessoa não deva ser condicionado por sua aparência ou por suas diferenças externas (acidentes), mas pelo fato de ela ser merecedora de respeito por formar parte da espécie humana.
O método utilizado é simples. O trabalho tem por base várias obras que foram consultadas como referência. Por isso, no percorrer da sua leitura poder-se-á perceber um processo de raciocínio adequado para entender o objetivo pelo qual foi feito o artigo.
1.     O homem em santo Tomás de Aquino.
1.2   Contexto filosófico de S. Tomás de Aquino
É importante, para a definição do homem em Tomás de Aquino, conhecer o contexto temporal e filosófico que se vivia na época deste filósofo. Assim pois, a preocupação filosófica se voltava entorno do problema dos universais, que viera desenvolvendo-se por volta dos séculos XI, XII e XIII (REALE; ANTISERI, 1990). Essa época cronológica é mais conhecida pela História Universal com o nome de Época Medieval, e a nominação que se dá aos transcursos das discussões filosófica desenvolvidas nesse tempo é conhecido como Período da Escolástica (porque os debates filosóficos se realizavam nas universidades – escola) (REALE; ANTISERI, 1990).
A conceição do homem não podia ser unitária, devido às diferentes tradições antropológicas que estavam presentes nesse momento; a filosofia grega, a Sagrada Escritura e os movimentos filosóficos-teológicos da Patrística (SGANZERLA; VALVERDE; FALBRETTI, 2012). Era evidente pois que o homem era visto a partir de ângulos diferentes, que até alguns não tinham bases fundamentais suficientes (ou eram distintas) que sustentassem a conceição clara sobre homem. Dessa maneira, a questão sobre o ser humano se fazia em vista de achar uma conciliação desses pontos de vistas antropológicos.
Tomás de Aquino, seguindo uma linha aristotélica – que então viera ser a novidade da filosofia – pretende abordar não só os assuntos filosóficos e antropológicos, mas, entrando no campo da teologia também, procurou resolver o problema dos universais, para responder aos conflitos intelectuais e antropológicos desse momento crítico para a história da filosofia. Interessa-nos, no entanto, apenas a conceição do homem deste filósofo.
1.3   O homem como ser composto de corpo e alma
A alma para S. Tomás de Aquino não constitui uma parte que seja separada do corpo, mas como algo que dá o ato de ser do homem; isto não significa tampouco algo acrescido ao corpo, senão a alma é inerente a ele, de forma que aconteça a vida na pessoa. É um princípio que faz com que o homem se manifeste como ser que tem vida. Pode-se entende-lo melhor com a afirmação direta do autor ao seguir: a alma é “o primeiro princípio da vida nas coisas, pois denominamos viventes as coisas animadas e inanimadas aquelas destituídas de vida” (apud SGANZERLA; VALVERDE; FALBRETTI, 2012, p. 43).
Como S. Tomás, como já foi dito, é de uma linha aristotélica, ele está de acordo com Aristóteles de dizer que o homem é um ‘animal racional’. Na verdade, para Tomás – como também para Aristóteles – a parte racional é a alma e a parte animal, o corpo. Por essa alma o homem pertence a categoria dos seres imateriais, mas, por outro lado, por estar unida essencialmente ao corpo ela é considerada como simples intelecto capaz de conhecer. Assim o homem é um ser que “se apresenta como um composto essencial de matéria e forma” (SGANZERLA; VALVERDE; FALBRETTI, 2012, p. 43).
Na obra O Ente e a Essência, Tomás de Aquino afirma a existência de seres compostos cuja essência para o intelecto é mais fáceis de ser conhecida devido a que ela é constituída de forma e matéria. Essa forma, no homem, vem a ser a sua alma e é o componente essencial no ente encarregado pelas atitudes vitais característicos dos seres animados. Assim  vê-se seguidamente:
Esta nossa exposição deve começar tratando das substancias compostas, para que, ao ser iniciada pelas coisas mais fáceis, ela seja mais convenientemente desenvolvida [...]. Nas substancias compostas, a matéria e a forma são conhecidas, como o são, no homem, a alma e o corpo (AQUINO, 1981, p. 66).
Está claro que a composição da forma e da matéria constitui a essência da substância composta, neste caso, refere-se ao homem. Esclarece-se esse ponto dizendo que “[...] a essência compreende a matéria e a forma” ou, mais nitidamente, “[...] a essência significa aquilo que se compõe de matéria e forma” (AQUINO, 1981, p. 66).
1.4   Ser homem a partir da essência e não dos acidentes
A partir da definição da alma, deveu ser necessário que esta exposição chegue a desenvolver o problema antropológico em S. Tomás de Aquino, que parte da noção de que o homem é composto de alma e corpo, e que esta composição é a união essencial das substâncias alma e corpo (TOMÁS DE AQUINO, 1981).
Mas, agora, convém acentuar que a existência de diferenças físicas entre os seres humanos, que para a experiência dos sentidos são mais fáceis de conceber do que a constituição essencial desse ser, pode fazer com que, à primeira experiência, se conceba o homem pelo seu aspecto físico e externo e de aí concluir com uma definição errada do o homem. De fato, o intelecto não tem a perfeição no conhecimento de uma coisa que se lhe apresente como algo novo, sem aprofunda-la. Assim, consequentemente, dar-se-ia a pretensão de chegar a determinar que existem “várias” espécies de homens, e, seguidamente, daria origem ao surgimento de discriminações. A discriminação nasce, de fato, desde o preconceito, que é uma deficiência da noção verdadeira, preconcebida, a respeito a uma pessoa (SANTA CATARINA, 2009).
 Por isso, para uma definição mais certa, deve-se fazer uma indagação mais profunda sobre o indivíduo humano, partindo não do aspecto externo, mas indo mais além da exterioridade. S. Tomás, assim o fez, quando, determinando a definição do que significa ‘essência’, ele afirma:
Deve a essência significar algo comum a todas as naturezas, mediante as quais os diversos entes são colocados nos diferentes gêneros e espécies. Assim é que, por exemplo, a humanidade constitui a essência do homem” (TOMÁS DE AQUINO, 1981, p. 64).
Nessa ‘humanidade’ já entram os homens cuja cor da pele, por exemplo, é diferente, como ocorre no caso do ‘homem branco’ e/ou o ‘homem negro’. Assim Tomás garante uma atitude contrária ao preconceito com o qual manifesta-se uma pretensão de deixar num grau inferior a determinados homens, julgados apenas a partir de uma visão externa e, em ocasiões, discriminatória.
2.     O valor do homem
Determinou-se que, em S. Tomás de Aquino, o homem é animal racional que somente pode ser denominado homem quando entendido em sua totalidade, isto é, a composição entre alma e corpo; há uma união intrínseca entre forma e matéria. Agora é preciso sublinhar os aspectos substanciais e acidentais do ser do homem, para se resolver a questão do seu valor, de sorte que fique bem indicado a necessidade do respeito à pessoa humana na sua dignidade.
A dignidade do ser humano está, de fato, em sua essência, pois é de aí que se considera no homem uma conceição verdadeira de seu ser. Por conseguinte, o valor que exige a rejeição da discriminação de uma pessoa, considerada inferior ou estranha por causa de sua raça, religião, etc., está na substância que a compõe, e não, propriamente, nos acidentes.
Como, porém, o ente considerado de modo absoluto e por primeiro se diz das substâncias, posteriormente e apenas segundo algum aspecto, dos acidentes, infere-se daí que a essência está, nas substâncias, própria e verdadeiramente, ao passo que, nos acidentes, está de certo modo e segundo algum aspecto [...] (AQUINO, 1981, p.  65).
 Partir dos acidentes seria, pois, partir dos caracteres externos do homem, que são visivelmente diferentes, e, portanto, haveria preferência na ordem do respeito e da consideração. Logo, a discriminação e desvalorização contra uma pessoa não vão desaparecer. Assim pois, os acidentes não devem condicionar o valor do homem.
Tampouco se pode afirmar que a matéria esteja na definição como algo acrescido à essência [...] tal tipo de definição é próprio dos acidentes, visto estes não possuírem essência perfeita [...]. Não se pode dizer que a essência significa [...] algo acrescido a matéria e a forma. Se assim fosse, esse algo seria necessariamente acidente [...] (AQUINO,1981, p. 66).
Tendo em conta essa consideração com respeito aos acidentes, é necessária uma visão mais profunda do ser do homem, chegando à essência dele. Para isso, S. Tomás coloca: [...]“ a coisa é cognoscível pela sua essência, e é também por ela ordenada na espécie e no gênero” (AQUINO, 1981, p. 66). Daí vale destacar uma vez mais que a constituição do ser do homem, seu valor como tal, está naquilo que ele é, isto é, na sua essência, a qual é a composição da forma (alma) e matéria (corpo). Pelo fato de ser homem, e por esse motivo não pode ser excluído do seu gênero ou espécie, ele tem valor em si mesmo e, por conseguinte, ele tem direito a ser tratado com dignidade, sem ser privado dos recursos necessários para a integração social, evitando assim os tratos de caráter discriminatório, coisa que aconteceria se, pelo contrário, se dá uma definição do homem a partir dos acidentes, mas isso seria, como já foi dito, uma definição errada do ser verdadeiro do homem.
Mas aquilo que o acidente advém é um ente completo em si mesmo [pela composição de forma e matéria], subsistente no seu ser, ser este que naturalmente precede o acidente que se lhe é acrescido. Portanto, o acidente acrescido, da sua conjunção com aquilo a que é acrescido, não causa aquele ser no qual a coisa subsiste, pelo qual ela é ente por si. (AQUINO, 1981, p. 88).
Por último, vale dizer que as diferenças fisicamente externas entre homens estão na espécie, porém, não como essência, mas como diferenciação sob a dimensão dos acidentes. Isso não faz de o homem ser distinto essencialmente dos seus semelhantes, mas apenas de forma acidental, quer dizer, são diferentes por aspectos que em nada modifica as substâncias que o compõem, porque são coisas que no homem podem variar, sem ele deixar de ser homem, como a altura, a gordura, a cor da pele, o lugar de procedência, etc. Conclui-se assim que a união do acidente com o sujeito, que é o homem, não constitui por si uma unidade essencial, e, portanto, é evidente que qualquer homem não deve ser julgado pelos seus acidentes, mas ser considerado pela sua natureza, na qual se encontra o seu valor verdadeiro, merecendo respeito e dignidade.

Conclusão

O relacionamento entre os seres humanos sofre rupturas por causa das discriminações, produzidas através do preconceito a pessoas por estas apresentarem caracteres externos diferentes. Com isso o valor que possui o homem fica condicionado por coisas que são externas a seu ser. Tal comportamento deve ser evitado no relacionamento social, pois existe só uma a espécie humana que garante a dignidade a todos por igual.
O valor do ser humano está no seu ser intrinsecamente, não devendo ser condicionado a partir dos acidentes que possui, mas da composição da sua natureza, isto é, sua essência, na qual se encontra sua verdadeira dignidade. Desse modo é necessário o respeito de todo homem, em oposição às discriminações.
As diferenças entre os homens, que são chamados acidentes, estão no ser constitutivo (neste caso o ser humano), em cuja natureza há um valor único e inquebrantável, por isso ninguém deve ser excluído ou afastado do direito a um trato digno e respeitoso.

Referências

AMÉRIO, Franco. História da Filosofia Antiga e Medieval. Coimbra, Casa do Castelo Editora, 1960.

AQUINO, Tomás. O ente e a Essência. Tradução de D. Odilão Moura. Rio de Janeiro: Presença, 1981
                                                                                         
FRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia. Vol. I. Madrid, BAC, 1965.

SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação. Michaelis: dicionário prático da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2009.

REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Antiguidade e Idade Média. Vol I. São Paulo, Paulus, 1990.

SGANZERLA, Anor; VALVERDE, Antonio José Romera; FALBRETTI, Ericson (Orgs.). Natureza Humana em Movimento: Ensaios de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2012. (Coleção Filosofia).


[1] Aluno do segundo semestre do curso de Filosofia do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) – Unidade Lorena.

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