Diferentes tipos de conhecimento em São Tomás de Aquino: Relação alma e intelecto

Alisson Rafael Lourenço dos Santos
Licenciando de Filosofia UNISAL
E-mail: alissonsantos14@hotmail.com
         
Dentro os assuntos abordados por Tomás de Aquino na introdução da obra Suma contra os gentios, há um que é tratado de maneira breve, mas de crucial importância para o entendimento do elo central desta obra (defender a fé cristã e corrigir os erros contrários): os níveis de intelecção. O problema e os níveis de conhecimento perpassam este ponto da obra onde Tomás os distingue de duas formas; em escala menor entre os humanos; e em escala maior entre as almas intelectivas.
          Para iniciar esta discussão, deve-se ter consciência do seguinte dado: o ato de inteligir, conhecer, não é uma faculdade unicamente da alma, mas também do corpo, através dos sentidos. Recebida a informação dos sentidos, há a memorização disso. Formam-se, então, dois tipos de conhecimento: o sensitivo e o intelectivo. Este é um ponto essencial que aponta para a teoria do conhecimento de Tomás, que não dispensa, de forma alguma, os sentidos no processo de intelecção humana.
           Tem ele o entendimento de que o homem é um composto, alma e corpo.  O Aquinate concebe não um dualismo – como em Platão – onde a essência do homem, se é que assim se pode dizer, está na alma, sendo esta a possuidora de todo o seu conhecimento já contemplado no mundo das ideias, onde se encontram as verdadeiras formas. Basta, então, para Platão uma reminiscência, uma ação puramente racional. Tomás, pelo contrário, considera uma dualidade (SGANZERLA, 2012, p. 41-50.): o homem composto de ato (atualidade do ser) e potência (possibilidade de ser), matéria (corpo) e forma (alma).
          Há uma discordância com o pensamento de Agostinho no seguinte ponto: para Agostinho a alma necessita diretamente de Deus  para conhecer, mas concorda ao falar de uma razão seminal (AQUINO, 2004, p. 28-33) contida no homem, posta por Deus. Trata-se da assim-chamada teoria da iluminação.
          Tomás considera a alma como forma do corpo, sendo ela aquilo que põe o corpo na atualidade do ser, e o corpo (matéria), como princípio de individuação (AQUINO, 1981).
Portanto, para Tomás, é necessária uma adequação de ambas as partes: sentidos (faculdade do corpo) e intelecto (faculdade das almas espirituais). São ambas necessárias ao homem para que este venha a adquirir um conhecimento verdadeiro. Porem está contida na alma humana, como principal faculdade, a capacidade de intelecção com o auxílio dos sentidos.
          Portanto, serão abordados nos dois próximos itens os três tipos de alma e os três níveis de intelecto. Os primeiros podem ser intendidos como degraus ascendentes: da alma vegetativa à sensitiva, e da sensitiva à racional (humana). E dentre os intelectos da mesma forma: do humano ao angélico, do angélico ao Divino, cada qual com seu grau de perfeição.

1 Três tipos de alma: vegetativa ou nutritiva; sensitiva; e racional ou intelectiva
          Ao tratar-se das questões do conhecimento em São Tomás de Aquino, esbarra-se no que diz respeito a sua biologia, a distinção e origem das almas. Discutir-se-á nestes itens sobre os três tipos de alma, mas com uma ênfase na alma humana (racional).
          Tomás na decima primeira questões sobre a alma (AQUINO, 2012, p. 229-245) põe em discussão qual a procedência da alma intelectiva. O questionamento levantado perguntava se seria a alma intelectiva proveniente do sêmen (matéria genética paterna).
          Ele inícia apresentando os argumentos contrários ao seu posicionamento, os quais afirmam que a alma intelectiva provém do sêmen. Nas objeções Tomás aponta para duas teorias errôneas adotadas por alguns para explicar a origem da alma intelectiva.
          Segundo São Tomás, dizem alguns que, antes da alma intelectiva, não há alma no embrião, seria ela infundida posteriormente; dizem
outros que, a princípio há uma alma vegetativa, que se transforma em sensitiva e vegetativa; e depois, por fim, transforma-se, por intermédio de um agente divino (no caso colocado como Deus), em alma intelectiva, sensitiva e vegetativa.
          O Aquinate aponta como erro da segunda tese a seguinte questão: a virtude geratriz presente no sêmen é matéria, e toda matéria age como instrumento do espiritual. Mas como a alma intelectiva é espiritual, logo, o sêmen não pode gerar a alma intelectiva. Também a alma é forma, e a forma não aceita variação, aumentando (como no caso apresentado) ou diminuindo, logo a alma não aceita variação seja ela vegetativa, sensitiva ou intelectiva.
          Desta segunda tese Tomás aponta um desdobramento a partir deste erro de compreensão. Caso se aceite a variação evolutiva, seria como dizer que a alma possuiria um movimento continuo; com isso a geração do homem não seria propriamente homem, assim como a geração do animal não seria propriamente animal, e geração da planta não seria propriamente planta.
            Surge a partir desta conclusão um segundo problema que também deve ser abordado: se as almas racional, sensitiva e vegetativa são no homem uma só substância; e de que forma seria a alma unida ao corpo (AQUINO, 2012, p. 229-245).
          Tomás apresenta como resposta ao primeiro questionamento a seguinte posição: os dois tipos de alma (vegetativa e sensitiva) estão presentes potencialmente no homem, em ato imperfeito por ser a alma humana de natureza racional, intelectiva.
          Para responder à segunda questão, Tomás apresenta a posição de Platão com a intenção de mostrar o erro contido nesta. Diz ele que, para Platão, a alma está para o corpo assim como o piloto para o navio. E também assim como em um navio há vários pilotos, no corpo haveria várias almas, cada qual possuindo sua função. De acordo com esta teoria seria admissível a distinção em substância da alma humana em suas três potencialidades.
          Aponta Tomás três incoerências nesta teoria: numa destas, a “alma” seria necessariamente predicado e outra acidente. Com isso seria impossível a percepção “o homem é animal”, ela tornar-se-ia homem e animal, ou animal e homem; e por tratar-se de virtudes de diferentes formas necessitariam de um terceiro para constituir-lhes unidade. Não concebendo um terceiro, o homem seria uno por agregação e múltiplo absolutamente; portanto a dimensão racional passaria a ser acidental ao invés de substancial.
          Conclui Tomás que:

 [...]no homem há uma só alma segundo a substância que é ao mesmo tempo racional, sensitiva e vegetativa [...]Daí que a alma racional confira ao corpo humano o que a alma vegetativa dá às plantas e o que a alma sensível dá aos irracionais [...]. (AQUINO, 2015a, p. 239)
          Portanto entende-se que a alma humana é dotada de maiores graus de perfeição se comparada com a alma vegetativa e sensitiva. Esta perfeição dá-se pela seguinte questão. Como já foi dito, a alma intelectiva não pode ser gerada pela matéria (diferentes dos outros dois tipos de alma), o que corresponde ao fato dela ser espiritual. Porém, dentre as almas espirituais, há outros dois tipos de almas, a angélica e a Divina, e em meio a estas a alma humana encontra-se no grau menor de perfeição. Logo, ao considerar os níveis de intelecção, encontra-se a alma humana abaixo da angélica e da Divina, quanto a grau de perfeição (AQUINO, 2015a, p. 39).
          O próximo item tem a pretensão de apresentar brevemente a distinção entre meios e formas de conhecimento destes três níveis de intelecto.

2 Três níveis de intelectos: Divino, angélico e humano
          Nestes três níveis de intelecto cada um possui um modo próprio de ciência, de conhecer: mas o ato de conhecer não se aplica ao intelecto Divino.
          Podem ser qualificados estes intelectos em três níveis: por primeiro, e em maior escala de distância dos outros está o conhecimento em Deus; no segundo lugar, o intelecto angélico; e, por fim, o intelecto humano. Vai ser considerada, a seguir, uma abordagem em ordem decrescente, partindo da ciência Divina, passando pelo conhecimento dos anjos e por fim chegando ao conhecimento humano.
          Quanto ao intelecto divino, fala-se de “ciência”, pois a Deus não compete o “conhecer”.
          Na questão quatorze da primeira parte da Suma Teológica (AQUINO, 1980, p. 132)  Tomás de Aquino fala de “ciência” quando se refere ao intelecto Divino. De fato, Deus conhece todas as coisas em ato. Consequentemente o “conhecimento” em Deus não é uma potencialidade, mas algo substancial. Conclui-se, pois, que em Deus há uma ciência perfeitíssima.
          Ele usa o seguinte argumento para comprovação de sua tese. “A limitação da forma à matéria, quanto mais imaterial é a forma, mais se aproximam de uma certa infinidade. [...] a imaterialidade da razão a torna capaz de conhecer.” (AQUINO, 1980, p. 133). Deus não possui matéria, logo sua capacidade de conhecimento é infinita.
          Pode haver, nisso duas concepções: Deus tem como sustância o próprio intelecto, portanto conhece em si mesmo; e por ser imaterial conhece de forma infinita. “Deus vê os outros, não neles, mas em si mesmo a partir da semelhança de sua essência para com eles.” (AQUINO, 1980, p. 139).
          Tomás, ao falar do intelecto angélico, faz uma advertência com relação a um equívoco. Ao afirmar que somente Deus conhece em ato, pode-se concluir que tantos os homens quantos os anjos conhecem em ato e potência, portanto, possuem intelecto agente e possível. Porém na quinquagésima quarta questão da primeira parte da Suma Teológica, ele vai dizer que os anjos não possuem intelecto agente e possível, pois estas são necessidades humanas. Mas também na parte introdutória da Suma contra os Gentios ele diz que:
[...] o anjo não pode conhecer por conhecimento natural aquilo que Deus é, porque a mesma substância angélica, pela qual é conduzido ao conhecimento de Deus, é um efeito que não está em adequação com a virtude da causa. Portanto o anjo não pode conhecer por conhecimento natural tudo o que Deus conhece. (AQUINO, 2015a, p. 40).
          Portanto há nos anjos uma forma de intelecção distinta, inferior à de Deus, mas superior à do homem. Para o Aquinate os anjos inteligem da seguinte forma: “[...]em potência somente, em relação ás coisas que naturalmente inteligem; nem os inteligíveis deles são potenciais, mas actuais, pois inteligem primária e principalmente, as cousas imateriais [...]” (AQUINO, 1980, p. 486-487). Portanto os anjos possuem somente conhecimento intelectual, desprovido de natureza sensitiva. Podemos considerar a questão de o anjo possuir menos matéria do que o homem, e seguindo a lógica apresentada a referir-se ao conhecimento de Deus, quanto mais imaterial mais se aproxima de uma certa infinidade (AQUINO, 2004, p. 82).
          Neste sentido São Tomás afirma:
[...]o intelecto inteligente que está para o intelecto, que intelige, como se lhe fosse a forma; pois é pela forma que o agente age. Ora, para a potência ser perfeitamente completa pela forma, é necessário seja contido por esta tudo o ao que a potência se estende [...]. (AQUINO, 1980, p. 488).
          Como já foi dito acima, os anjos inteligem as coisas imateriais, mas não possuem em ato, como sua substância ou essência. Portanto pode-se dizer que é dado o conhecimento ao anjo de forma infusa ou, como é dito na citação acima, em contato com mente divina. De ambos os meios não é necessário para os anjos, como é para os homens, compor e dividir.
          A partir deste ponto pode-se compreender a afirmação de Tomás que considera o homem incapaz de compreender a Deus, e junto dela as verdades de fé (dogmas). Pois ao homem é dado um saber em ato e potência, sempre em possibilidade de aperfeiçoamento, não podendo chegar à compreensão total de Deus pela razão, que é perfeitíssimo, mas ter dele apenas “demonstrações” de sua existência por meio dos fenômenos causados por Ele. Fica assim claro o entendimento da afirmação presente na Suma Contra os Gentios, onde Tomás diz que   “[...]a razão natural é falível nas coisas divinas.” (AQUINO, 2015a, p. 38), sendo elas de grau menor e não estando em estado de potência e ato.
          O Aquinate para clarificação da ciência de Deus e do conhecimento angélico utilizara-se de comparações com o conhecimento humano, e mediante estas informações pode-se identificar o modo próprio do conhecimento do homem.
          Segundo Tomás, o homem compreende de forma discursiva, compondo e dividindo, conforme ele afirma no quarto artigo da questão de número setenta e nove da primeira parte da Suma (AQUINO, 1980, p. 693-699) onde ele expõe sua compreensão do processo de intelecção. Para melhor compressão da atividade de compor e dividir no processo de intelecção, é preciso compreender que há no homem um intelecto passivo, o qual torna o homem capaz de aperfeiçoar as noções por meio de abstrações que lhe são fornecidas pelo intelecto agente, que, segundo Tomás, é iluminado por um intelecto superior e ele.
          Tomás distingue os três tipos de intelecto da seguinte forma: “[...] muitíssimo mais o intelecto divino excede ao angélico do que este ao intelecto humano.” (AQUINO, 2015a, p. 40)
          Para Tomas de Aquino o homem não conhece em si mesmo, como Deus, nem de forma infusa, como os anjos, e sim conhece de forma discursiva, como uma potencialidade de intelecção, como um ver no espelho, passando o conhecimento de potência ao ato. Tomás apresenta neste ponto um duplo discorrer da ciência humana, desta forma: sucessivo, onde o homem parte do conhecimento de uma coisa em ato para chegar ao conhecimento de outra coisa; e causal, onde parte dos princípios para chegar-se ao conhecimento das conclusões. Em ambas o conhecimento provém de algo extrínseco.
          Mediante as ideias apresentadas acima percebe-se que o agente age em função de algo, uma finalidade. Esta finalidade, segundo Tomás, não pode ser o infinito por referir-se a algo impossível de ser feito. Segundo Tomás:
[...]é necessário que a ordem das tais ações seja ou segundo a ordem das potências ativas, como se o homem sente para imaginar, imagina para conhecer, conhece para querer; ou na ordem dos objetos, por exemplo, se considera o corpo para considerar a alma, que considera para considerar a substância separada, que considera para considerar Deus. (AQUINO, 2015b, p. 17).
          Fica assim sendo impossível remeter-se ao infinito como fim.
          Segundo Tomás a finalidade de qualquer coisa é o bem, o próximo item procurará apontar o que é este bem, ou quem é este bem.

Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
AQUINO. Santo Tomás. Suma contra os gentios. Trad.  de Joaquim F. Pereira. São Paulo: Loyola,  2015a. v. 1.

______. Suma contra os gentios. Trad.  de Joaquim F. Pereira. São Paulo: Loyola,  2015b. v. 3.

______. Questões disputadas cobre a Alma. Trad. Luiz Astorga. São Paulo: É Realizações, 2012.

______. Sobre o ensino (De magistro), os sete pecados capitas. Trad. Luiz Jean Lauand. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______.O Ente e a Essência. Trad. Odilão Moura. Rio de Janeiro: Presença, 1981.

______. Suma teológica: primeira parte. Trad. Alexandre Corrêa. 2. ed. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1980.

ARISTÓTELES.  Metafisica. Trad. Vincenzo Cocco. São Paulo: Abril S/A Cultura e Industrial, 1973.

JOVILIVET. Régis. Curso de filosofia. Trad. Eduardo Prado de Mendonça. 12. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1976.

MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. Trad. J. Renard. 5. ed. São Paulo: Paulinas, 1980.

SGANZERLA, Anor; VALVERDE,  A.J. R. ; FALABRETTI, E. (Orgs,) Natureza Humana em movimento. São Paulo: Paulus 2012.


TORRELL. Jean-Pierre. Introdução Santo Tomás de Aquino: Sua vida e sua obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2015.

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