A Educação para Kant
Lucas Santos Correia
Kant
em seu livro Sobre a Pedagogia, ele concebe a educação subdividida em física ou
prática. Entretanto, o elemento central em torno do qual ele articula a
reflexão é a formação do caráter. Se, na educação física, o processo consiste
em cuidados com o corpo, com a saúde, com nossa vida material ou em formar
hábitos saudáveis, na educação prática, formar o caráter envolve
fundamentalmente o desenvolvimento da virtude, isto é, a capacidade que o
indivíduo desenvolve em si de agir conforme o dever, que, por meio da razão,
ele estabelece para si mesmo.
Na
educação tudo depende de uma coisa: que sejam estabelecidos bons princípios e
que sejam compreendidos e aceitos pelas crianças. Estas devem aprender a
substituir ao ódio o horror do que é nojento e inconveniente; a aversão
interior em lugar da aversão exterior diante dos homens e das punições divinas;
a estima de si mesmas e a dignidade interior em lugar da opinião dos homens; o
valor intrínseco do comportamento e das ações em lugar das palavras e dos
movimentos da índole; o entendimento em lugar do sentimento; a alegria e
serenidade no bom humor em lugar da devoção triste, temerosa e tenebrosa. Mas é
preciso, antes de mais nada, preservar os jovens do perigo de estimar demais os
méritos da sorte (KANT, 2002, p. 96).
Percebe-se
aí que a formação do caráter se concretiza na moralidade. Contudo, para chegar
a essa etapa se requerem alguns passos anteriores. Assim é que se tornam fundamentais
a disciplina, a cultura e a civilização. Por meio da educação, o ser humano
deve ser disciplinado, tornar-se culto, civilizar-se e moralizar-se.
A
disciplina consiste na parte negativa da educação, isto é, em apenas impedir
que a animalidade prejudicasse o próprio ser humano, tanto no plano individual
quanto no nível da espécie. Dito de modo breve é domar a selvageria que existe
no ser humano.
O
desenvolvimento de habilidades no manejo com as coisas e a instrução, por
exemplo, leitura e escrita, utilizar instrumentos musicais, jogos e outras
atividades que propiciem o desenvolvimento da disposição técnica que o ser
humano possui, caracterizam o processo para a aquisição de cultura. Precisamos
também estabelecer relações na sociedade, ser aceitos e ter capacidade de
influência em determinados momentos. Para esse processo, a educação deve
propiciar a aquisição da civilidade ou prudência, elemento indispensável para
tal.
A
moralidade é o ponto de chegada de todo o processo educativo na concepção kantiana.
Esta é entendida como autonomia, ou como a capacidade do homem de estabelecer
para si a lei pela qual se regula sua ação. Com isso, temos que a Moral, por
meio da Pedagogia, efetiva-se enquanto finalidade do ser humano. Além disso,
esclarece Kant:
Na
verdade, não basta que o homem seja capaz de toda a sorte de fins; convém
também que ele consiga a disposição de escolher apenas os bons fins. Bons são
aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo
tempo, os fins de cada um. (KANT, 2002, p. 26).
Não
é difícil perceber, nessa colocação, a aproximação com a formulação do
imperativo categórico que Kant (KANT, 1986, p. 59) propõe: Age apenas segundo
uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.
Como vimos anteriormente, o caminho que leva à formação do caráter moral
(finalidade da educação) é a prática da virtude. A virtude consiste, então, em
escolher, dentre todos os fins possíveis, somente os bons.
Na
Metafísica dos Costumes, Kant (KANT, 2003, p. 248) define virtude como [...] a
força moral da vontade de um ser humano no cumprir seu dever, um
constrangimento moral através de sua própria razão legisladora, na medida em
que esta a constitui mesma uma autoridade executando a lei. Entretanto, ressurge
nesse contexto a velha pergunta sobre a possibilidade do ensino da virtude. Na
mesma obra, Kant (KANT, 2003, p. 319) deixa clara sua resposta: Que a virtude
pode e precisa ser ensinada é consequência já de não ser ela inata, afirma ele
na obra supracitada. Isto significa que, fundamentalmente, os valores
postulados pela ética kantiana, como a autonomia do sujeito, a aspiração de uma
sociedade cosmopolita e outros, passam pela questão do aprendizado ou, dito de
outro modo, por um processo educativo. Conforme Freitag (KANT, 2001, p. 22), o
ideal ético e pedagógico kantiano está comprometido com a perfectibilidade
humana.
Por
meio da educação, a virtude é concretizada em dois tipos de deveres, que as
crianças desenvolverão: deveres para consigo mesmas e deveres para com os
demais.
Os
deveres para consigo mesmas podem ser classificados em limitativos (deveres
negativos) ou ampliativos (deveres positivos). Os primeiros consistem na
proibição de um ser humano agir contrariamente ao fim de sua natureza, ou seja,
consiste na sua autopreservação moral. Os deveres ampliativos consistem no
aperfeiçoamento de si mesmo. Em ambos os casos, trata-se de preservar o que se
designa como a dignidade da humanidade em si mesmo. Para isso, é senhor
afastar-se de todos os vícios, como, por exemplo, os que se referem ao
suicídio, à concupiscência e aos excessos na comida e na bebida, no primeiro
caso, e à mentira, à avareza e ao servilismo ou falsa humildade, no segundo
caso.
Tal
conceito de dever para consigo mesmo envolve tanto a dimensão corpórea ou material
do ser humano, como a dimensão intelectual ou imaterial. O aprendizado dessa
primeira perspectiva da educação moral é pressuposto para o aprendizado da
segunda perspectiva.
O
aprendizado dos deveres para com os demais é inseparável do aprendizado dos
deveres para consigo mesmo por uma questão fundamental: em ambos, a questão da
dignidade humana é resguardada. Isto fica explícito numa das formulações do
imperativo categórico, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes: age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, quanto na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como
meio (KANT, 1986, p. 69). Podemos citar, como exemplo de dever para com os
demais, a beneficência, a gratidão e a solidariedade, além de outras virtudes,
como a amizade, a sociabilidade e a cortesia.
Percebe-se
que a humanidade é concebida como um atributo que confere dignidade à pessoa.
Logo, o dever é cultivá-la e preservá-la. O dever para consigo mesmo
caracteriza e fundamenta o dever para com os outros. Nas duas perspectivas
estão implícitas a questão do aprendizado e a referência à humanidade.
Mas, afinal, pergunta-se Kant, o homem é bom ou mau por natureza? Não é
bom nem mau por natureza, pois não é um ser moral por natureza. O homem
“torna-se moral quando eleva sua razão até os conceitos do dever e da lei”
(KANT, 2002, p. 95).
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