A integração entre a Fé e a Razão no Livro I da Suma contra os Gentios

Brendo dos Santos Lima[1]
Resumo: A relação entre a filosofia e a teologia, mostram-se dentro da realidade e do contexto histórico, em um verdadeiro embate, onde a teologia procura dar a si mesma o título de verdade e despreza a razão, e esta procura apenas com o uso dos logos desvalorizar as verdades reveladas. Com isso Tomás de Aquino procura fazer um diálogo entre os racionalistas e os teólogos visando uma harmonia entre a Fé e a Razão, para mostrar a importância, autonomia e a união das duas ordens de verdade e que elas conduzem para um fim.

Palavras-Chave: Tomás de Aquino; Fé; Razão; Problemática; Relação; Verdade

Sumário: Introdução; 1 Contexto Histórico; 2 A Fé; 3 A Razão; 4 Problemática entre a Fé e a Razão; 5 Caminhos para o Absoluto; 5.1 Relação Fé e Razão (Magistério/ Doutrina da Igreja); Conclusão. Referencias.

INTRODUÇÃO
Os questionamentos que circulam em torno do tema Fé e Razão, tiveram início com o surgimento da nova religião e as declarações feitas por ela a respeito de uma verdade transcendental, pautada pela crença e pelo testemunho apostólico sobre a pessoa de Jesus. Essa novidade, no campo antropológico, entra em um contexto onde a razão natural inaugurada pelos pré-socráticos e intensificada pelos seus sucessores, buscava a verdade, mas no plano ontológico.
Com o passar do tempo, os dados considerados revelados, passaram a ser questionados pelos considerados racionais, sobre a autenticidade de tais fatos e como se aplicam em uma realidade ontológica, resultando em uma problemática.  Nesse sentido, o que antes era apenas crença precisou guiar-se pela razão para sistematizar-se e homologar aquilo que antes já haviam sinalizado como certeza de vida.
Diante dos problemas de diálogo da religião com os considerados gentios pela linguagem cristã de então, Tomás de Aquino escreve a Suma Contra os Gentios, frente uma enorme discussão sobre as questões da fé e da razão. Diante disso, através de questões metafísicas, Tomás afirma que a verdadeira Razão Natural não é contrária à Fé Cristã, atesta a autonomia das mesmas e estabelece uma harmonia colaborativa, onde as duas fontes de verdade caminham para o mesmo fim, o Bem, ou seja, Deus.
O presente artigo procurará desenvolver as teses da fé, da razão, como essas duas fontes entraram em disputa e mostrar a importância do diálogo entre fé e razão no caminho do conhecimento. Com isso o artigo procurará justificar a necessidade desse diálogo na atualidade e como ele foi usado para a reformulação e constituição da doutrina da Igreja.

1 Contexto Histórico

Tomás de Aquino (1225- 1274) viveu em um período da história chamado Escolástica, momento esse importante para a vida religiosa como também para a filosofia medieval. Ainda no século XIII, existia uma grande problemática, advinda do período patrístico sobre o diálogo entre a religião cristã e a razão. Reale e Antiseri apresentam a importância desse grande pensador:
Expoente entre os escolásticos, verdadeiro gênio metafísico e um dos maiores pensadores de todos os tempos. Tomás de Aquino elaborou um sistema de saber admirável pela transparência lógica e pela conexão orgânica entre as partes, de índole mais aristotélica do que platônico-agostiniana. (REALE; ANTISERI, 1990 , p. 553).

O Frei Tomás, mais tarde considerado pela teologia católica como Doutor Angélico, tenta através da metafísica fazer uma síntese entre o pensamento aristotélico e o pensamento cristão-católico, formulando conceitos para a ratificação dos dogmas, como também da sua explicação, tais como os conceitos de Ato e Potência e Matéria e Forma.
Respondendo a um apelo de Raymundo de Penãfort[2] Tomás escreve um livro intitulado "Suma contra os Gentios", realizando um diálogo com aqueles considerados gentios na concepção religiosa da época, os islâmicos, judeus, pagãos entre outros. Utilizando-se de dados racionais, o filósofo busca traçar a sua linha de raciocínio, visando a um único fim: a busca da verdade e o caminho para chegar a tal princípio.
O Livro I da SCG[3] apresenta, em sua parte introdutória, o ofício do sábio e qual o caminho deste, comprometido com a verdade, para chegar à sabedoria. Em segundo lugar, indica as questões intencionais sobre a escrita da obra. Só com essa explanação o autor entra em discussão sobre a verdade, como se origina, de onde provém, quais são as verdades e se há contradições entre elas. Aqui vale salientar o que Tomás afirma a propósito da escrita da obra:


Confiando na piedade divina para prosseguir neste ofício de sábio, embora isso exceda nossas forças, temos por firme propósito manifestar, na medida do possível, a verdade que professa a fé católica professa, eliminando os erros contrários a ela. [...] Por dois motivos é difícil tratar de cada um dos erros. [...] Primeiro, porque não nos são bastante conhecidas as palavras sacrílegas de cada um dos que erram, para que delas possamos tirar os argumentos e destruir-lhes os erros. [...] Segundo, porque entre os que erram, alguns como os maometanos e os pagãos, não aceitam, como nós, a autoridade de algum texto das escrituras, pelo qual possam ser convencidos. [...] Por esses motivos, deve-se recorrer à razão natural, com o qual todos são obrigados a concordar. (AQUINO, 1990, p. 21)

Ao fazer essa análise dá logica que será usada para a refutação das argumentações heréticas e na explicação da fé aos Gentios, Tomás recorre à razão natural, a qual poderá, com toda autoridade, explicar os dados de fé, identificar os erros dos argumentos contrários, facilitar uma visão universal das questões e fatos e tentar estabelecer um diálogo entre a Teologia (Revelação) e a Filosofia (Razão).
O ponto ápice da apresentação do Livro I, refere-se à não contradição entre as verdades de fé e as verdades da razão natural, visto que ambas, independentes, de uma forma objetiva, visam à verdade, que como tal possui um fim que é o princípio de todas as coisas, de onde provém a verdade que é Deus.


2 A Fé

O conjunto de ideias relacionadas a Deus e que eram transcendentes à razão humana são os dados de fé. Tal pressuposto fora fundamentado pelo Cristianismo por volta do Séc. I com Jesus de Nazaré e, séculos depois, com seus discípulos, formando uma religião de princípios éticos e morais, de acordo com os ensinamentos do Evangelho e das Sagradas Escrituras.
Nesse mesmo período da pregação evangélica, a nova religião se distancia da velha filosofia típica dos gregos, desenvolvendo uma corrente unicamente teológica, que é denominada na Patrística como a corrente africana, para a qual a Revelação era a verdade e com isso já era suficiente tal conhecimento. Neste sentido João Paulo II escreveu:

Na realidade, o encontro com o Evangelho, oferecia uma resposta tão satisfatória à questão do sentido da vida, até então insolúvel, que frequentar os filósofos parecia-lhes uma coisa sem interesse e, em certos aspectos, superada. (JOÃO PAULO II, 2010, p. 53).

A fé, era naquele momento considerada suficiente, para explicar certos dados da vida e sobretudo com relação às questões da eternidade e da salvação. Há uma desvalorização da racionalidade, atribuindo primazia ao anuncio das palavras de Jesus. Paulo em sua carta aos Coríntios afirma:

Os judeus pedem sinais, os gregos buscam sabedoria; Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus, como gregos, é Cristo, poder de Deus e Sabedoria de Deus (1 Cor 1,22-24).

Ao fazer uma análise crítica a respeito desse pensamento paulino, é possível detectar a centralidade no anúncio, pois Paulo, numa atitude radical, faz uma distinção entre a Sabedoria Divina (Revelação) e a sabedoria humana (razão). Cristo agora se torna o centro de uma linha de pensamento, voltada para a liberdade do homem e a sua salvação, voltada para o Transcendente.
O abandono dos dados racionais e o fechamento do conceito apenas teológico na explicação da existência humana, da salvação, da ressurreição da carne, a consubstancialidade do Pai e do Filho são algumas das problemáticas enfrentadas pela teologia no avanço dos séculos, o que fará com que a doutrina cristã-católica adote formas que sejam únicas, especialmente lógicas para mostrar em uma linguagem clara, reta e objetiva, os seus significados e as verdades contidas nos seus argumentos.
No período medieval, principalmente na Escolástica, após uma releitura teológica-filosófica dos dados da fé, Tomás de Aquino faz uma análise da fé e do conhecimento de Deus, seguindo um princípio lógico, eis o que afirma:

Com efeito, só conhecemos verdadeiramente Deus quando cremos que ele está acima de tudo aquilo que é possível ser pensado a respeito de Deus pelo homem, dado que a substancia divina eleva-se acima do conhecimento natural do homem [...] Por isso, pelo fato de que são propostas ao homem verdades a respeito de Deus que excedem a razão, firma-se no homem a opinião de que Deus é algo acima de tudo aquilo que se possa pensar. (AQUINO, 1990, p. 26).

Partindo dessa colocação, nota-se claramente a posição de Tomás sobre a fé, a qual deve ser levada em conta no processo do conhecimento. Com efeito o conhecimento de Deus para o homem dá-se de forma análoga, ou seja, apenas pelas aparências fazendo assim o caminho onde a verdade contempla a Revelação. Essa prerrogativa, também mostra que há limites na razão natural que não podem transcender, dando assim espaço para colocar-se no conjunto da verdade, os dados sobrenaturais, que segundo a argumentação de Tomás, é Deus, substancia simples e que está acima do intelecto humano.

3 A Razão

O princípio da razão, pautado pelo uso do pensamento para formar conceito sobre determinada res [4]foi constituído pelos pré-socráticos há mais de dois mil anos, quando, saindo do mito, os filósofos procuravam entender a verdade por trás das coisas sensíveis, ou seja, da realidade. A busca pelo conhecimento deixou de ser uma questão particular e passou a ser uma questão universal, e o raciocínio deixou de ser mera especulação e relativização e passou a apresentar-se de uma forma mais concreta, passando para o plano abstrato e gnosiológico.
Passados os séculos, os filósofos que surgiram deram à filosofia um caráter unicamente de investigação sistemática, pois apenas através da sabedoria, provinda da razão, o indivíduo poderia conhecer, na história vale salientar os seguintes métodos e os pensamentos: Sócrates com a maiêutica; Platão com o mundo das ideias e Aristóteles com o conhecimento a partir do mundo sensível, a composição da matéria e forma e o conceito de ato e potência. Todos esses trouxeram um aspecto que rompia com os pré-socráticos e trazia para o método racional a nova chave de leitura do pensamento: a antropologia.
Após um período de longa investigação à luz da verdade, a realidade agora gira em torno de uma polarização entre um seguimento religioso e suas verdades ante uma razão ligada ao plano unicamente material e que levanta questionamentos. Na era da escolástica, principalmente no período em que está situado, Tomás de Aquino revela pontos a respeito do que seria essa sabedoria, e qual o objeto de compreensão da razão humana, elaborando o conceito de intelecto.

O princípio de todo conhecimento que a razão apreende em alguma coisa é a intelecção da sua substancia. [...] Daí ser conveniente que, segundo o modo pelo qual a inteligência conhece a substancia da coisa, seja também o modo de se conhecer tudo que pertence a essa coisa. (AQUINO, 1990, p. 22).

O processo racional do conhecimento nesse caso, para Tomás, se daria de uma forma totalmente oposta à dos seus predecessores. Na intelecção, compondo e dividindo, o indivíduo é capaz de conhecer, ou seja, ao passar da potência ao ato assemelha-se às coisas passíveis de geração, que não têm imediatamente a sua perfeição, mas a adquirem gradualmente. (AQUINO, 2015, p. 537). A afirmação tomista do conhecimento naquele contexto, ia de encontro com os princípios teológicos da época, pois o conceito de ciência no intelecto humano, para a Igreja, baseava-se no processo da Iluminatio[5], idealizado por Agostinho e que afirmava que a inteligência era concedida ao homem através da razão divina.
Dentro dessa perspectiva, a razão, que antes era utilizada pela patrística, para explicar os dados de fé, inicia um processo de independência, e agora o indivíduo questionará a sua realidade até os dogmas católicos e suas prerrogativas. Tal questionamento não se dá segundo o pensamento de Tomás, como uma forma de controvérsia da fé, mas como método para explicar dos dados da fé, fazendo com que esta não seja absurda e tenha argumentos para deliberar e delinear as suas afirmações teológicas.


4 Problemática entre a Fé e a Razão

A religião criada por Jesus na Palestina, no séc. I da nossa era passou a ser divulgada e anunciada em larga escala pelos discípulos, e pelos seus seguidores. Com a morte do último apóstolo, deu-se início na história da filosofia ao tempo chamado Patrístico, dos Padres da Igreja.[6] Durante esse período, cria-se um problema fundamental: a relação entre a nova religião e a razão natural. Esse problema divide o pensamento em três fragmentos: extremamente racional, extremamente teológico e a relação entre ambos, chamadas pela história de correntes gnóstica, africana e alexandrina, sequencialmente. Eis o que afirma Franco Amerio:

A primeira corrente, nitidamente heterodoxa é a corrente gnóstica. É caracterizada pela pretensão de reduzir a fé cristã à ciência [...] A segunda corrente, chamada africana, reivindica a originalidade e novidade do Cristianismo, declarando a sapiência humana, isto é, a filosofia inadequada à sapiência divina, à revelação. Entre Cristianismo e filosofia pagã não há relação alguma, mas separação absoluta, desinteresse recíproco. [...] a corrente destinada a exprimir a verdadeira atitude da ortodoxia é a corrente grega ou alexandrina [...] Sua posição fundamental consiste em reconhecer a transcendência do Cristianismo e em afirmar que o dogma cristão é irredutível à ciência, aos conceitos e a filosofia. Ao mesmo tempo, porém, asseveram que entre Cristianismo e filosofia pagã não há relação de oposição, mas de complemento, de continuação e de superação. (AMERIO, 1960, p. 157-158).

Antes, as primeiras gerações cristãs, tinham no Evangelho e nas palavras de Cristo a única verdade. A partir de então, com o auxílio da nova corrente, a nova religião procurou, usando da razão, explicar as teses de argumentação consideradas heréticas, segundo a concepção cristã. Desse modo, o que antes era só catequese e pregação, agora enxergou a necessidade de sistematizar de forma clara e exata os pontos fundamentais dos textos sagrados, dando resposta objetiva às inferências contrárias à fé e garantindo a continuidade da pregação apostólica e patrística.
No período escolástico, havia duas correntes vigentes nas concepções intelectuais da época: os franciscanos, com fragmentos da corrente africana, só que esta iluminada pela filosofia de Agostinho, e os dominicanos, com a corrente alexandrina, iluminada pela filosofia aristotélica. “Alguns desconfiam da razão, refugiando-se na fé; outros reconhecem supremacia da razão em relação à fé” (ZILLES, 1996, p. 43-44). Essas duas correntes entraram em embate, no momento em que os dados da teologia começaram a ser questionados. O que antes era conceito dogmático agora passa a ser objeto de estudo e análise da razão.
Tomás de Aquino surge dentro desse contexto de disputas entre teólogos e filósofos como um novo intérprete de Aristóteles, que aplica na teologia católica todo o conceito metafísico, do ato e potência, da matéria e forma, da substância e acidente. Esses conceitos para os teólogos da época significavam um escândalo, pois tais referências, consideradas pagãs, justamente pela aplicação da filosofia aristotélica, no contexto, não se aplica à ciência de Deus, já que a ideia filosófica de então era a razão divina que projetava a sabedoria no intelecto humano, e que este já estava provido da razão, porque fora constituído imago Dei.[7]
Dentre tantos problemas que resultaram nessa crise teológica-filosófica, um merece destaque, o problema da verdade. O cristianismo apresentava-se como verdade extranatural, objeto da crença, com isso um novo conceito estava sendo elaborado, o que antes não havia sido concebido. Esse conceito de verdade, fora um dos grandes problemas que assolavam as relações da razão (datada pelo conhecimento pelas coisas sensíveis) e a fé (com Revelação e as verdades ligadas ao transcendente, ou seja, que estão além da natureza). As afirmações contrárias sobre o que é a verdade, de onde provém, e como se alcança, são as questões em alta no contexto universitário e dos embates entre os mestres. Quanto a essa problemática Tomás afirma a autonomia da razão e da fé, onde as duas procuram a verdade, uma pela razão natural, outra pela revelação. Quanto a isso vale salientar o que diz Tomás na Suma Contra os Gentios:


Há, com efeito, duas ordens de verdades que afirmamos de Deus. Algumas são verdades referentes a Deus e que excedem toda capacidade da razão humana, como por exemplo, Deus uno e trino. Outras são aquelas as quais a razão pode admitir, como, por exemplo, Deus ser, Deus ser um, e outras semelhantes. Estas os filósofos, conduzidos pela luz da razão natural, provaram, por via demonstrativa, poderem ser realmente atribuídas a Deus. (AQUINO, 1990, p. 22).

 Outra questão que se dá no período medieval é a problemática sobre a unidade da alma nos seres humanos. Neste caso a discussão situava-se da seguinte maneira: tendo Jesus Cristo como exemplo, afirmava-se que durante sua morte, a alma estaria separada do corpo, possibilitando entender que não haveria unidade nem identidade se a alma fosse a única forma de um ser humano. Tomás responde que o corpo de Jesus morto guardava sua identidade e unidade, já que esses dois pressupostos existem “por causa de sua união com a natureza divina na pessoa do Filho. ” (NASCIMENTO, 2011, p. 49).
Configura-se uma cisão entre Razão e Fé, que terá seu ápice no século XVII, onde haverá um rompimento com todos princípios que levam a um transcendente. Joseph Ratzinger[8] certa vez discursando na Universidade da Baviera, afirma que há patologias na religião, que podem levar a um fundamentalismo religioso, preso a suas próprias convicções e doutrinas, como também há patologias na razão, que chegam a submeter todo o conhecimento à técnica e a pura razão.  O papa na atualidade, como Tomás de Aquino, na Idade Média, procura estabelecer um diálogo entre as duas prerrogativas da verdade, e mostrar como as ambas são fundamentais para a harmonia universal do conhecimento.

5 Caminhos para o Absoluto

Tomás de Aquino, traz uma inovada concepção intelectual, dando a filosofia e a teologia um ar de harmonia. Dentro do contexto de disputas intelectuais na universidade sobre o questionamento de dados da fé e sobre a autonomia da razão humana, Tomás procura fazer um aprofundamento do dogma e das diretrizes do cristianismo, numa ótica racional.
Tomás procura estabelecer a autonomia das duas correntes, a razão e a fé, onde cada uma em seu campo, uma na racionalidade e a outra na Revelação, tendem para um único fim: a Verdade. Quanto a isso Baraquin e Laffitte afirmam:


Tomás elabora uma distinção precisa entre a razão, faculdade natural de pensar própria ao homem, e a fé, adesão aos dogmas da Revelação. Não há passagem de uma para a outra. A fé resulta de premissas indemonstráveis reveladas, enquanto a filosofia e a ciência procedem por afirmações demonstráveis a partir de premissas, tanto sensíveis, como puramente lógicas. (BARAQUIN; LAFFITTE, 2007, p. 293).

É importante salientar que Tomás de Aquino, como religioso, coloca Deus como Verdade, e que tanto a razão como a fé, precisam trilhar o caminho para contemplar o Bem. Com isso estabelece que por mais que elas andem por caminhos distintos, ambas chegarão ao mesmo fim que é Deus, substância simples e perfeita. Ainda dentro de desse contexto, vale salientar que o filósofo, explícita a supremacia do Transcendente sobre a razão humana, eis o que afirma:

[...] conclui-se, pois do que dissemos, que por mais imperfeito que seja o nosso conhecimento das coisas sutilíssimas, ele traz para alma a máxima perfeição. Conclui-se, finalmente, que não obstante a razão humana não poder compreender plenamente as verdades que estão acima de si, contudo, ela adquire grande perfeição se ao menos as admite pela fé. (AQUINO, 1990, p. 26).

Embora Tomás, estabeleça a superioridade do Transcendente sob a razão humana, chama-nos atenção para as extremidades praticadas pela fé, onde apenas ela, pode levar a concepções fundamentalistas. No capítulo VI, ele chama a atenção para como o exemplo de Jesus, introduziu a verdade no coração de seus seguidores, mas que outros líderes, usando do argumento de fé, não apresentou testemunhos da verdade (AQUINO, 1990, p. 28). Com essas afirmações, o filósofo, chega à conclusão de que para crer é necessário conhecer, e o processo para o conhecimento, o qual imbuído pela razão, e guiado pela fé, chegam a verdade, que está de acordo com a filosofia tomista, em Deus. O que reforça a seguinte tese:  tanto os dados teológicos, como os dados racionais, que vem de Deus, não se opõem, pois buscam a verdade, e anulando uma a outra estaria anulada. (AQUINO, 1990).
Uma análise do pensamento harmônico do filósofo sobre a fé e a razão, traz a seguinte reflexão: a razão serve para mostrar que a fé não é absurda, e a fé para mostrar a razão, que o transcendente se manifesta e que age no ser humano. Essa influência filosófico-teológica de Tomás, adentrou na doutrina católica de uma forma mais profunda. Nos tópicos que seguem, serão apresentados de uma forma panorâmica, alguns exemplos e as inferências da razão na concepção e no argumento do cristianismo, os quais serviram para afirmar o dogma e sanar dúvidas sobre a doutrina.

5.1 Relação Fé e Razão (Magistério/ Doutrina da Igreja)
A relação entre fé e razão, influenciada pela argumentação de Tomás de Aquino, ganhou espaço na doutrina católica, sendo introduzida nos documentos e nos dogmas da Igreja. João Paulo II na sua encíclica Fides et Ratio quando trata do interesse da igreja pela filosofia e da formação dos sacerdotes, chama a atenção para o seguinte propósito:

O estudo dos costumes tradicionais deve ser acompanhado simultaneamente pela pesquisa filosófica. Será esta que possibilitará fazer sobressair os traços positivos da sabedoria popular, criando a necessária ligação com o anuncio do Evangelho. Devo insistir novamente que o estudo da filosofia reveste um caráter fundamental e indispensável na estrutura dos estudos teológicos e na formação dos candidatos ao sacerdócio. [...] Senti a urgência de confirmar, por meio desta carta encíclica, o grande interesse que a Igreja tem pela filosofia; ou melhor a ligação íntima do trabalho teológico com a investigação filosófica da verdade. (JOÃO PAULO II, 2010, p. 85-86).

Essa relação que fora atualizada pelo Papa João Paulo II, já havia dado largada com os Padres da Igreja, que utilizaram da razão natural, para reforçar a dogmaticidade das prerrogativas cristãs. Um grande exemplo disso é a constituição do Credo Niceno-Constantinopolitano, símbolo da fé cristã-católica, onde houve a ratificação da única substância da Trindade. Eis o que diz a oração:

Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação 
desceu dos Céus. (CIC, 2000, p. 58).

A constituição dessa parte do credo, deve-se a resposta que os Padres da Igreja deram as chamadas heresias[9], idealizadas por Ario, Nestório e Eutiquio. O primeiro considerava a semelhança do Filho com o Pai, mas negava a sua consubstancialidade, ou seja, que o filho não é Deus, mas uma criatura perfeita que mais se assemelha a Deus; o segundo que na pessoa de Cristo haveria duplicidade de pessoa, ou seja, duas naturezas: humana e divina e o terceiro que dizia que em Jesus haveria uma fusão da natureza humana com a divina. Nesse sentido, a teologia recorreu a filosofia para homologar o dogma católico sobre os conceitos de pessoa, natureza e substancia de Cristo. Tal episódio pode ser considerado como o primeiro esboço de sistematização filosófica do Cristianismo (AMERIO, 1960, p. 161).
Passando para o Período Escolástico, Tomás de Aquino, ao promover o equilíbrio entre a fé e a razão, aplica o conceito de matéria e forma à fórmula de consagração do pão e vinho na celebração da Missa. Na questão 74 da Suma de Teologia, ao questionar nos artigos sobre se a matéria do sacramento requer pão e vinho, Tomás responde as teses contrárias dizendo: “mas todos esses erros e semelhantes se excluem, por ter Cristo instituído este sacramento sob as espécies de pão e vinho, como é evidente no Evangelho. Portanto, pão e vinho são a matéria que convém a este sacramento”. (AQUINO, 2013, p. 253).  Para a transubstanciação[10] do pão e vinho no Corpo e Sangue de Cristo, necessita-se de duas coisas, a matéria (pão e vinho) e a forma (epíclese[11] = oração). É nesse momento que há a conversão (cf. AQUINO, 2013, p. 273) substancial do pão e vinho no Corpo e Sangue de Cristo.
Essa nova fórmula de explicar a mudança de substância, mas também a organização dos dados, mostra quão sucinta e clara é a necessidade da unidade entre fé e razão e como elas justas são necessárias para a edificação do conhecimento. Eis o que afirma o filósofo:

[...] o conhecimento dos princípios naturalmente evidentes é infundido em nós por Deus, pois Deus é autor da natureza. Por conseguinte, esses princípios estão também contidos na sabedoria divina. Assim também, tudo o que é contrário a eles contraria a sabedoria divina e não pode estar em Deus. Logo, as verdades recebidas pela revelação divina não podem ser contrárias ao conhecimento natural. (AQUINO, 1990, p. 29).

Fica, pois, estabelecido, o método da filosofia Tomista, a qual inaugurou um novo tempo para a teologia e a filosofia, formando assim um tempo de paz. Onde tais argumentos e contestações para se chegar a um único fim, a verdade, fixa-se no capítulo VII da SCG, onde Tomás afirma que não pode haver contradição entre as duas ordens de verdade, pois as duas originam de Deus, o que reafirma a originalidade, distinção, autonomia e complemento de uma para com a outra.

CONCLUSÃO
A relação entre fé e razão desde a patrística, passando pela escolástica e chegando até a atualidade, passou por várias contestações, refutações e até duelos entre si. Desde o início do cristianismo houve a necessidade de explicar de uma forma sistemática os dogmas e as realidades propostas no Evangelho, o que levou os cristãos a utilizarem-se da velha filosofia dos gregos para dar veracidade à verdade sobrenatural que estava sendo apresentada até então. Essa tese sustentou-se até a escolástica onde diante das heresias dos gentios, Tomás de Aquino escreve a Suma contra os Gentios, numa forma de diálogo para sanar dúvidas sobre a religião cristã e como esta não é contrária a filosofia.
Na abordagem sobre a fé, é importante salientar que essa verdade, antes da abertura ao logos grego, prendia-se em suas próprias convicções, e como tal abandona o uso da razão para a verificação sistemática da realidade, e utiliza como método único de vida e verdade o Evangelho. Pode-se assim dizer que naquele tempo havia uma dogmaticidade, no sentido de fechamento, da fé à razão, o qual por um bom tempo permaneceu sem nenhuma alteração até o surgimento das heresias, que abalam as colunas da doutrina.
A razão inaugura um novo período na história da humanidade, deixa a especulação e passa para a investigação sistemática. Essa nova forma de argumento, dá ao indivíduo uma autonomia de conhecimento, pois, o que antes era apenas apontado como mera obra do acaso, forma-se agora um conceito, desse conceito, uma tese e dessa tese uma verificação de dados da realidade pelo raciocínio, dando assim um caráter primacial ao indivíduo, na aprendizagem.
Iniciando na Patrística e arrastando-se até a Escolástica, a nova religião e a velha filosofia entram em choque, quando uma começa a refutar e questionar dados referentes as suas prerrogativas, o que leva, a um afastamento, mas ao mesmo tempo uma fonte de recurso, por parte da fé, já que esta utiliza de dados racionais para homologar a unicidade da substancia de Jesus Cristo e a firmeza do dogma. Já na escolástica, o embate passa para as universidades e eis que surge Tomás de Aquino, para dar um ar de simetria para a razão e a Revelação. Ao estabelecer a autonomia delas, procura mostrar que todas caminham para um fim, a verdade, que de acordo com seu preceito está em Deus e essas não podem anular-se pois foram infundidas no intelecto humano pelo Ato Puro, artífice de todas as coisas.
Por fim, é importante salientar que a conciliação entre a fé a razão trouxe frutos positivos para a doutrina e para os dogmas católicos, pois havendo uma reconfiguração de argumentação e reformulação de conceitos, o que antes era simplesmente hipótese, passa a ser objeto de análise e de interesse da Igreja. A fé, veio para mostrar a razão que há uma verdade revelada por Deus e que esta não pode ser anulada, pois a Verdade é Deus e a Razão veio para dar veracidade aos dados teológicos e mostrar que a fé não é um absurdo. Tais princípios são refletidos até a atualidade no magistério e na vida da Igreja, pois a Verdade pode ser alcançada pela fé e pela razão, cada uma em seu caminho, cada uma na sua originalidade e autenticidade dada pelo Transcendente.

REFERENCIAS
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ZILLES, Urbano. Fé e Razão no Pensamento Medieval. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.



[1]Aluno do 2º semestre do curso de Filosofia do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Unidade Lorena. E-mail: brendo201047@hotmail.com
[2] Raimundo de Penãfort, (1175-1275), foi confrade de Tomás de Aquino, jurista de grande renome e conselheiro de Jaime I, o Conquistador, rei de Aragão, com visão evangélica e missionária estava preocupado com os mouros e os judeus submetidos ao valente aragonês. Com isso recorreu a Tomás, solicitando-lhe que escrevesse uma obra que pudesse preparar teológica e filosoficamente os missionários dominicanos para a evangelização dos árabes e judeus da província. (AQUINO,1990, p. 5).
[3] Suma Contra os Gentios. A partir de então, a citação da obra se dará por esta abreviatura.  
[4] A palavra em latim traduzida para o português significa “Coisa”. Essa palavra tem dentro da filosofia dois significados fundamentais: 1º genérico, designando qualquer objeto ou termo, real ou irreal, mental ou físico, etc., de que, de um modo qualquer se possa tratar; 2º específico, denotando os objetos naturais como tais. (ABBAGNANO, 2000, p. 149).
[5] Este conceito é dado por Agostinho, que afirma que a inteligência e o conhecimento das coisas são infundidos por Deus à razão humana. Na escolástica esse pensamento é defendido por Boaventura que afirma que o conhecimento é uma intervenção especial de Deus tanto nas questões de fé, como as da natureza.
[6] Aqui a palavra “padres” tem o significado de Pais da Igreja e não do sacerdócio católico.
[7] O conceito Imago Dei, foi adotado pelo Cristianismo e reforçado por Agostinho. De uma forma geral tal conceito introduz o ser humano no mistério do Criador, como sua imagem e semelhança.
[8] O supracitado autor era Cardeal Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em 2005 é eleito para Papado e sobe ao trono de Pedro com o título de Bento XVI.
[9] Doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé
[10] A palavra é a junção de Trans (além) + substantia (substancia) e Significa a mudança de substância do pão e vinho, no Corpo e Sangue de Cristo no ato da consagração. Disponível em: <http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/2981/48/>
[11] A epíclese (invocação sobre) é a intercessão na qual o sacerdote suplica ao Pai que envie o Espirito Santificador para que as oferendas se tornem o Corpo e Sangue de Cristo, e para que ao recebê-los os fiéis se tornem eles mesmos uma oferenda viva a Deus. (CIC, 2000, p. 312).

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