A vontade livre e sua realização objetiva no Direito Abstrato
A vontade livre e sua realização objetiva no Direito Abstrato
Cristian Samuel Gómez Celada[1]
E-mail: samuelcelada05@gmail.com
Resumo: No
presente trabalho pretende-se
acompanhar a vontade em seu processo de realização objetiva. Tal processo se
realiza a partir da superação da vontade individual abstrata até a vontade
comum das pessoas individuais concretizada no contrato social. A vontade segue
o movimento circular da dialética, perpassando de um momento ao outro seu
desdobramento como vontade livre, consciente de si e tida a si mesma como
finalidade. Desse modo, o ponto de partida deste trabalho é a interpretação do
momento, segundo o pensamento de Hegel, a partir do qual a liberdade da vontade
realiza sua existência exterior de maneira objetiva.
Palavras-chave: Vontade livre. Processo.
Movimento dialético. Direito abstrato. Contrato.
Sumário
1.
Introdução
Dentro do complexo e
complicado horizonte do pensamento hegeliano, o filósofo alemão, Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770 – 1831) aborda, de uma
maneira rica em originalidade, inúmeras questões referentes ao âmbito do
pensamento, da natureza e da filosofia em geral. E é particularmente na
esfera do seu pensamento jurídico que trata sobre o problema da liberdade, a
qual se torna, segundo Hegel, o centro e destino do Estado de Direito.
Na tentativa de defender a
tese de que é o Estado quem permite a realização da liberdade mediante às
instituições jurídicas, como a família, a comunidade social e o próprio Estado,
o filósofo abre questões relevantes sobre o processo de realização da vontade
humana na dimensão do Direito abstrato. É certo que, no entanto, esse processo
se encontra em todas as partes em que é dividida sua obra que trata sobre o
Direito[2], sendo a última, a
moralidade objetiva, a parte em que trata propriamente das questões que
envolve, de forma ampla e acabada, o Estado jurídico (HEGEL, 1997, p 141). A
seguir, será trabalhodo tal procedimento no que se refere ao Direito abstrato.
Nesse sentido, o presente
trabalho apresenta indicações do processo pelo qual a vontade livre percorre até
sua realização objetiva, abordadas por Hegel na primeira parte de sua obra Princípios da Filosofia do Direito. Em conformidade
com isso, deve-se levantar o questionamento a respeito do método utilizado pelo
filósofo para a elaboração de seu pensamento. Com isso, segue-se o problema
referente à liberdade da vontade: questiona-se se a vontade do homem é livre ou
não.
A
liberdade, tema do qual se discute a partir da reflexão da vontade, é tratada
por Hegel desde a perspectiva de uma filosofia prática para uma relação de
indivíduos a partir do contrato social. Dessa
maneira, pretende-se, em síntese, acompanhar a vontade em seu processo de
superação desde a vontade individual abstrata até a vontade comum dos
contratantes, momento a partir do qual a liberdade da vontade realiza sua
existência exterior de maneira objetiva.
2.
O movimento dialético e a filosofia do Direito
de Hegel
2.1 O
movimento dialético
Não
se pode negar a complexidade de que é caracterizado o pensamento hegeliano.
Cabe perguntar qual procedimento que o filósofo usou na composição de seu
sistema filosófico e, especificamente, do sistema de Direito.
Uma
obra tão densa como a de Princípios da
Filosofia do Direito caracteriza-se por um procedimento que entrelaça todas
as suas partes, de tal modo que a compreensão plena de seu conteúdo depende
muito da observação de sua forma metódica de composição. Por esse motivo, é necessário reforçar que, como Hegel mesmo afirma no final do prefácio dessa obra:
“se filosoficamente se tem de falar de um assunto, o único método adequado é o
científico e objetivo e, por isso, o autor considerará como [...] comentário
[...] indiferente toda a refutação que não assuma a forma de um estudo
científico do objeto” (HEGEL, 1997, p. XL).
Hegel
concebeu o método dialético como o único processo que segue o desenvolvimento
mesmo da realidade e, portanto, como método científico. O pensamento deve
acompanhar o processo que a realidade experimenta enquanto a sua evolução
natural. O pensamento deve exercer-se como atividade reflexiva que acompanha as
condições pelas quais o objeto (a realidade) é constituído, de tal modo que se
possa pensá--lo como ele é, ou seja, é o essencial dele que lhe dá as condições
próprias de ser esse objeto. Desse modo, o conteúdo do pensar é o resultado da
reflexão feita sobre a realidade, conteúdo que se torna o universal pensado a
partir do objeto. De acordo com Hegel pode--se afirmar que:
Tomando
al pensar como activo en relación con objetos (el reflexionar sobre algo),
resulta que lo universal, en cuanto [es] ese producto de la actividad del
pensar, contiene el valor de aquello de lo que se trata, lo esencial, lo
interior y verdadero (HEGEL, 2005, §21 p. 129).
Desta forma, supõe-se que o verdadeiro dos objetos não
está imediatamente no pensamento, mas é pela reflexão sobre a experiência que
temos de um objeto que o pensamento formula seu conteúdo, organizando-o
abstratamente. Hegel defende que:
[…] lo
verdadero de los objetos, su condición propia y lo que les acaece, lo íntimo y
esencial, aquello de qué va, no se encuentra inmediatamente en la conciencia, no es lo que se ofrece a la
primera mirada u ocurrencia, sino que hay que ponerse a reflexionar sobre ello
para llegar a la verdadera condición del objeto, ya que ésta se alcanza sólo
por la reflexión (HEGEL, 2005, §21 p. 129, grifo nosso).
O
método dialético ou a Dialética é, pois, para Hegel, o único apropriado para
pesquisa filosófica e científica. A dialética adota três etapas essenciais que
permitem a consolidação de dois momentos opostos. Cada um destes momentos é
negação do outro, sendo que a terceira parte da dialética consiste na produção
de uma nova tese (síntese) que supera
as negações precedentes.
O
desdobramento dialético da Ideia do Direito segue de forma paradigmática o
desdobramento do “espírito”. O espírito por sua vez se constitui em um
movimento circular denominado frequentemente como “o movimento triádico”. Este
movimento é próprio do espírito e consiste em um refletir-se-em-si-mesmo (REALE, ANTISERI, 2005, p. 103),
considerando os “três” momentos que realiza: a) primeiro momento é chamado de o
“ser-em-si”; b) o segundo, por conseguinte, é o “ser-outro” ou
“ser-fora-de-si”; c) e por último, o “ser-em-si-e-por-si”, em que o movimento
do espírito retorna a si, mantendo a relação dos dois primeiros momentos
(REALE, ANTISERI, 2005, p. 103).
Esse
procedimento próprio do pensamento concebido por Hegel aborda o objeto de
estudo da Filosofia do Direito, que é desenvolvido no Princípios da Filosofia do Direito. Conforme o movimento dialético, a obra se
divide em três partes; a primeira correspondendo ao Direito abstrato – já que o
Direito é pensado em si, mantendo-se no elemento abstrato (HEGEL, 1997). Na
segundo parte, trata sobre a moralidade subjetiva, onde pode-se observar o
desenvolvimento da reflexão sobre a moralidade desde fora do elemento abstrato
do Direito, mas com base no ponto de vista do ”sujeito”. Na terceira e última
parte, trata sobre o sistema do Direito em si e por si, detendo-se na questão
principal que é objeto da pesquisa sobre o Direito: o Estado como império da liberdade
realizada (HEGEL, 1997).
Nota-se
que, em todas as obras de Hegel, o movimento é o mesmo. A dialética torna-se
assim para Hegel o meio pelo qual deve ser estudado a realidade como um todo.
Os
desdobramentos deste movimento dialético levam a considerações especificamente
sobre o desenvolvimento da ideia da vontade livre, que o filósofo Hegel
desenvolve de forma sintética na primeira parte desta obra, em O Direito Abstrato.
2.2 A filosofia do Direito de Hegel
A
ciência do Direito não é senão uma parte do sistema filosófico. Ela se inicia
graças ao resultado da atividade de outras disciplinas filosóficas. Por isso, o
objeto próprio da filosofia no exercício da racionalidade é o desenvolvimento
necessário da Ideia de direito, segundo
o movimento dialético.
No
pensamento hegeliano, existe uma distinção entre Ideia e conceito, e o objeto a que os dois primeiros se
referem: Ideia se refere ao âmbito do pensamento enquanto formal e constitui o
objeto da Lógica; o objeto sobre o
qual trata o pensamento lógico é a Ideia. Mas como pensamento, “a ideia [...] é
a totalidade que se desenvolve a si mesma das determinações e leis próprias do
pensamento, [totalidade] que ele se dá a si mesmo” (HEGEL, 2005, p. 125, tradução nossa)[3].
Nesse sentido vale considerar a Ideia como a totalidade que abarca tanto o
conceito quanto o objeto a que corresponde.
Hegel desenvolveu tal noção de Ideia como noção básica que se manifesta
em toda sua filosofia.
No
que diz respeito ao estudo do Direito na filosofia, o conceito de Direito deve
ser tomado como dado, algo
perceptível à consciência, sem a necessidade de verificação, para descrever o
seu desenvolvimento que corresponde aos momentos na qual a Ideia do direito
toma como processo imanente na sua efetivação, pode-se concluir que
O seu objeto é, por conseguinte,
desenvolver, a partir do conceito, a Ideia, porquanto esta é a razão do objeto,
ou, o que é o mesmo, observar a evolução imanente própria da matéria. Como parte da filosofia, tem um
ponto de partida definido que é o resultado
e a verdade do que precede e do qual constitui aquilo a que se chama prova.
Quanto à sua gênese, o conceito do direito encontra-se, portanto, fora da
ciência do direito. A sua dedução está aqui suposta e terá de ser aceita como
dado (HEGEL, 1997, p. 1).
A
proposição feita por Hegel na sua filosofia do Direito consistiu na descrição
sistemática da Ideia da liberdade como matéria do sistema de Direito,
destacando os momentos pelos quais o desenvolvimento da vontade pode ser
concretizado. Trata-se em última instância de apresentar o sistema jurídico
como “o império da liberdade realizada” (HEGEL, 1997, p.12), compreendendo que
sua base própria parte da mesma liberdade para sua concretização e realização
(HEGEL, 1997, p.12).
O
Direito para Hegel é parte integrante do espírito, ou seja, tem a ver com a
consciência e o pensamento que se tornam práticos e são feitos valer no espaço
e no tempo adequando as coisas aos fins da vontade. Mais especificamente, o
direito é, no âmbito do espírito, uma manifestação da vontade pensada livre. As
ideias e as instituições do direito procedem do querer consciente, inteligente
e livre dos homens. É aí que entra a questão da liberdade da vontade (humana),
perguntando-se se a vontade é livre ou se existe vontade que carece de
liberdade. Com efeito, esta questão é tratada na introdução da filosofia jurídica
de Hegel, descrevendo passo a passo o desdobramento da vontade no indivíduo até
a manifestação objetiva dela como liberdade humana no Estado, em que a
intersubjetividade é vital para o exercício da liberdade objetivada.
3.
Pode a vontade ser considerada livre?
Dada
as considerações do método empirista sobre a questão da prova não meramente
especulativa da liberdade humana, mas sustentada em conceitos que representam
as impressões da experiência dos sentidos e do pensamento, chegava-se a definir
que a vontade do ser humano é livre. Na sua obra, Hegel menciona o caso da
antiga psicologia empírica que tratava particularmente sobre essa questão,
afirmando que as manifestações da vontade se provava mediante, por exemplo, os
sentimentos de responsabilidade, de culpa, etc. que assumiriam o status de
prova para constatar a liberdade da vontade (HEGEL, 1997, p.12).
Esta
questão da liberdade da vontade remete-se à filosofia moderna na qual os novos
procedimentos das pesquisas científicas e filosóficas, inspiravam correntes de
pensamento que manifestavam rastros de determinismos em relação à vida, às
ações humanas e, consequentemente, à vontade. Por exemplo, a filosofia de
Spinoza, que no seu livro Ética
demostrada à maneira dos Geômetras fala apenas de “caminho da liberdade”,
sendo o homem visto apenas como um “modo” da “substância” – pensada esta como o
“todo” que abarca toda e qualquer realidade – era constantemente “afetado” pela
relação que se cria em contato – à vez involuntária – com outros homens, sem
afirmar explicitamente que a liberdade é capaz de ser exercida pelo ser humano[4]. Isto dificultava a crença
de que o ser humana era dotado de liberdade.
Independentemente
das provas que as ciências, por exemplo a psicologia, poderiam apresentar para
a demonstração de que a liberdade é própria da vontade humana, Hegel defende
que tal faculdade é inerente à natureza do espírito do homem. A liberdade da
vontade deve ser pensada como “dado da consciência em que é forçoso acreditar”
(HEGEL, 1997, p.12). Ao pensar que o indivíduo é livre já é suficiente para
atestar que a liberdade forma parte da pessoa humana, dado que só o ser humano
é capaz de saber-se livre; só ele pode ter “consciência” de sua liberdade. A
razão ou o pensamento é, assim, sua condição.
Contudo,
isso não significa que a razão ou o pensamento já de início de seu
funcionamento como substancia do espírito no indivíduo corresponda à liberdade,
quer dizer, a liberdade precisa ser realizada. Isso porque, sendo a liberdade
ação do espírito, ela recorre a estádios que levam aos instintos, desejos e
pensamentos do ser humano ao status de vontade, em que a liberdade é vista como
inerente à vontade do homem, já que “a natureza de uma e de outra só se podem
deduzir na correlação com o todo” (HEGEL, 1997, p.12). É por isso que o
espírito, para Hegel, passa por uma série de etapas prévias para alcançar sua
autoprodução como vontade (ou liberdade), desta forma
O Espírito é, de início,
inteligência, e as determinações através das quais, pela representação, efetua
o seu desenvolvimento desde o sentimento até o pensamento são as jornadas para
alcançar produzir-se como Vontade, que, enquanto espírito prático em geral, é a
verdade próxima da inteligência”. (HEGEL, 1997, p.12).
Tal
é o caminho através do qual o espírito se produz como vontade. Dessa maneira ele,
dada a sua dinamicidade, se torna espírito prático, porque, ao passar pelas
diferentes formas de sua própria determinação, ele necessariamente requer da
exterioridade para manifestar-se como vontade. Nas palavras de Carla Cordura, a
exterioridade pode-se entender com a noção de “espaço” e “tempo”: “[...] a
vontade é, pois, um modo peculiar do pensamento capaz de tornar-se prático e de
converter-se em existências espaço-temporais” (CORDURA, 1992, p. 7, tradução
nossa)[5].
A
vontade, entretanto, começa com a pura representação de si mesma na esfera da
abstração e negação de qualquer elemento que possa valer como determinação objetiva
da vontade, como conteúdo que a determina. Quer dizer, nessa esfera, a vontade
se tem a si mesma na dimensão da universalidade a partir da qual ela adquire
conhecimento de si mesma e da sua liberdade. Este é o primeiro elemento da
vontade apresentada por Hegel como sendo
o elemento da pura indeterminação
ou da pura reflexão do eu em si mesmo, e nela se evanesce toda a limitação,
todo o conteúdo fornecido e determinado ou imediatamente pela natureza, as
carências, os desejos e os instintos, ou por qualquer intermediário; a
infinitude ilimitada da abstração e da generalidade absolutas, o puro
pensamento de si mesmo. (HEGEL, 1997, p.13).
Este
puro pensamento de si mesmo é o que evidencia inicialmente a liberdade da
vontade, pois o pensamento é capaz de se abstrair de qualquer conteúdo
delimitador da vontade: como os desejos, as carências, os instintos, etc. Hegel
denomina essa liberdade como liberdade negativa, pois nega qualquer capacidade
de realização externa, e, portanto, a capacidade de se tornar espírito prático,
pois segundo o filósofo alemão
É certo que o aspecto da vontade
aqui definido – esta possibilidade de me abstrair de toda a determinação em que
me encontro ou em que estou situado, esta fuga diante de todo o conteúdo como
diante de toda a restrição – é aquele em que a vontade se determina. É isso o
que a representação põe para si como liberdade e não passa, portanto, de
liberdade negativa ou liberdade do intelecto. (HEGEL, 1997, p. 14).
É
por essa razão que o segundo elemento ou momento dialético da vontade – ou do
Eu – consiste em determinar a vontade como objeto que lhe permite ter lugar na
existência externa. Sendo assim é possível concordar que
Ao mesmo tempo, o Eu é a passagem
da indeterminação indiferenciada à diferenciação, a delimitação e a posição de
uma determinação específica que passa a caracterizar um conteúdo e um objeto
[...]. Com esta afirmação de si mesmo como determinado, o Eu entra na
existência em geral; é o momento absoluto do finito e do particular no Eu.
(HEGEL, 1997, p.15).
O
Eu nega ou se opõe ao primeiro elemento, afirmando sua existência objetiva
determinada por um conteúdo que ele mesmo se dá. Não obstante, tanto o primeiro
quanto o segundo elemento da vontade atuam em conjunto no domínio da sua
realização no interior e no exterior do indivíduo. Isso posto é necessário que
o Eu se determine a si mesmo, o que quer dizer que a vontade tem por finalidade
a sua própria realização. É a síntese a que o eu chega, pois
a vontade é a unidade destes dois
momentos: é a particularidade refletida sobre si e que assim se ergue ao
universal, quer dizer, a individualidade. A autodeterminação do Eu consiste em
situar-se a si mesmo num estado que é a negação do Eu, pois que determinado o
limitado, e não deixar de ser ele mesmo, isto é, deixar de estar na sua
identidade consigo e na sua universalidade, enfim, em não estar ligado senão a
si mesmo na determinação. (HEGEL, 1997, p.16)
Situar-se
o eu a si mesmo em um estado de sua própria negação abstrata, com o movimento
dialético, a fim de que seu agir, sua ação ou sua autodeterminação não seja
delimitada por outros objetos a ele desconhecido. Pelo contrário, o eu age
conscientemente. É assim que Hegel demostra a liberdade da vontade, que segue
um caminho de realização concreta e verdadeira, na qual “o que é concreto e
verdadeiro [...] são o universal que tem no particular o seu oposto, mas num
particular que, graças à reflexão que em si mesmo faz, está em concordância com
o universal” (HEGEL, 1997, p.16). A liberdade constitui a substância da
vontade, de modo que aquela não se pode separar desta, do mesmo modo que a
gravidade não se pode separar dos corpos (HEGEL, 1997, p.16).
Desta
forma, pode-se concluir que não é possível falar de uma sem se referir à outra:
a liberdade não é liberdade se não é resultado de uma vontade, e a vontade não
pode existir sem liberdade, em síntese a vontade é, por si mesma, livre.
Partindo
desse pressuposto de que a vontade é livre, Hegel parte para descrever a
configuração que consegue no Direito abstrato, de como se processa a realização
objetiva desta mesma vontade.
4.
Realização objetiva da vontade livre na
configuração da Direito abstrato
O movimento imanente da
evolução dialética do espirito, cuja constituição se realiza da premissa de que
à “imediatez” abstrata da ideia, refletida “em-si-mesma”, que constitui a
esfera da autoafirmação do espírito subjetivo (HEGEL, 2005, §387,
p. 439), se opõe a superação desse momento primário pela reflexão que o Eu realiza
sobre o seu estado fenomênico al depara-se diante da existência objetiva da
natureza – ser-fora-de-si (HEGEL, 2005, §
413, p.469). Destas duas premissas,
o espírito volta a si, para manter-se em si e para si: “está na unidade de sua
objetividade e sua idealidade ou conceito, unidade que dentro de ele
“está-sendo” em si e para si e que está produzindo-se eternamente; é o espírito
na sua verdade absoluta: o espírito absoluto” (HEGEL, 2005, §385,
p. 437, tradução nossa)[6]. Tal é a apresentação do
progresso dialético do espírito feita por Hegel. Acompanhando essa linha,
pode-se perceber o progresso evolutivo da vontade livre no Direito abstrato.
Nessa consideração, vale
sublinhar o aspecto de “negatividade” dialética de um momento sobre o outro,
que Hegel o considera como momento necessário para o progresso do espírito.
Viu-se que a vontade caminha simultaneamente com esse movimento dialético até
alcançar sua realização absoluta no Estado de direito.[7]
No primeiro momento abstrato – e, portanto, concernente ao âmbito do pensamento
– o Eu abstrai seu conceito mantendo-se nessa determinação abstrata, negando
qualquer particularidade do real. Mas o eu deve superar essa esfera da
abstração a fim de que possa afirmar sua liberdade objetiva, a tal ponto que
deve ir além dos limites do intelecto. É nesse processo que a vontade livre
deve dar-se um domínio exterior para existir, não mais como conceito, na
abstração, mas como ideia, em que ela se dá a liberdade de “apropriar-se” de
“algo”.
Não obstante, a vontade
livre, na primeira fase de seu desenvolvimento dentro do campo do direito, deve
tornar-se “pessoa” com a qual a sua existência empírica deve ser “uma coisa
exterior imediata” (HEGEL, 1997, p. 35). Nessa ótica é conveniente afirmar que
El espíritu en la inmediatez de su libertad que está-siendo para sí misma es singular, pero tal que sabe su singularidad como voluntad absolutamente
libre; es persona, es el saberse de
esta libertad; un saber que, como es abstracto y vacío en sí mismo, no tiene
aún su particularidad y compleción
en él, sino en una COSA exterior. (HEGEL,
2005, D, p. 526, grifo nosso).
É, com efeito, a partir da “personalidade” que o Eu
adquire consciência de si e, por conseguinte, de sua liberdade, sendo que
a
personalidade só começa quando o sujeito tem consciência de si, não como de um
eu simplesmente concreto e de qualquer maneira determinado, mas sim de um eu
puramente abstrato e no qual toda limitação e valor concretos são negados e
invalidados. (HEGEL, 1997, p.40).
Desta maneira, a primeira
coisa exterior (imediata) de que a vontade livre deve tomar posse é ela mesma,
pois sua autoconsciência consiste no conhecimento de si “como de um objeto
exterior”, em que o eu se afirma como existente (HEGEL, 1997, p. 40). Assim
sendo, Hegel afirma que
o
espírito que em si e para si exige distingue-se do espírito fenomênico por
isso, na determinação em que o último só é consciência de si segundo a vontade
natural e suas contrariedades extrínsecas [...], o primeiro se apreende a si mesmo, eu abstrato e livre, como objeto e
como fim, e é, portanto, uma pessoa. (HEGEL, 1997, p.40, grifo nosso).
Hegel também sustenta que a personalidade jurídica é a
capacidade que faz de o indivíduo ser digno de direito e “constitui o
fundamento [...] do direito abstrato [...]” (HEGEL, 1997, p.40). A partir
disso, a vontade do indivíduo passa a ter existência externa na propriedade de
uma coisa dentro da natureza; primeiro ela mesma, depois a manipulação de uma
parte da natureza (propriedade privada). A legitimidade disso está na
personalidade, pois só a partir dela a efetivação da vontade na apropriação de
uma coisa é real, mas é real apenas na medida em que ela se realiza dentro do
Estado. Baseando nisso, a liberdade da vontade é fruto da personalidade
jurídica do indivíduo, mas, por outro lado, essa liberdade só se fundamente de
forma objetiva na sua relação com a liberdade de outra pessoa, com a qual o
direito abstrato estabelece a realização objetiva da vontade livre, segundo a
afirmação de que,
o
direito começa por ser a existência imediata que a si se dá a liberdade de um
modo também imediato nas formas seguintes: a) A posse, que é propriedade; aqui,
a liberdade é essencialmente liberdade da vontade abstrata ou, em outros
termos, de uma pessoa particular que só se relaciona consigo mesma; b) A pessoa
que se diferencia de si se relaciona com outra pessoa e ambas só como
proprietárias existem uma para a outra; a identidade delas, que existe em si
(virtual), adquire a existência pelo trânsito da propriedade de uma para outra,
com mútuo consentimento e permanência do comum direito. Assim se obtém o
contrato [...] (HEGEL, 1997, p.42).
Mas essa manipulação da vontade aconteça de forma
arbitraria, pois, a vontade pode tomar posse de uma coisa e livremente deixar
de fazê-lo, para dar lugar a outrem de se apropriar dela. É o aspecto contingente da propriedade. Hegel, destarte,
sustenta que
El aspecto
contingente de la propiedad reside en que yo deposito mi voluntad en esta COSA;
por consiguiente mi voluntad es arbitrio porque yo tanto puedo depositar en
ella mi voluntad como no depositarla, y tanto la puedo retirar como no. Pero en
tanto mi voluntad reside en una COSA, sólo yo la puedo retirar de ella y la
COSA sólo por voluntad mía puede pasar a otro, del cual deviene propiedad sólo
con su voluntad igualmente: contrato (HEGEL, 2005, §492, p. 528).
Em síntese, para a
realização e fundação objetiva da vontade livre na configuração do direito
abstrato é preciso da estipulação de duas (ou mais) vontades livres
contratantes, que determinam de forma objetiva a realização concreta da
liberdade sob a orientação que recebem do contrato no Direito abstrato. Assim,
parte-se a descrever a consolidação da liberdade da vontade no contrato social.
4.1 A
consolidação da liberdade da vontade no contrato social
A realização da
existência externa da vontade livre em relação à propriedade dá-se de forma
concreta e verdadeira no contrato com uma outra vontade. É por isso que a exterioridade
da vontade coincide com a exterioridade da vontade de outrem. A relação mutua
entre elas deve ser ambarada pelo contrato e legitimada pelo Estado. Nesta
ordem chega-se a determinar a objetividade da liberdade no Direito abstrato,
que não foge do terreno social ao pressupor a vontade do outro como necessária
para a sua realização externa. Com isso, Hegel coloca à luz tal aspecto
contratual das vontades livres ao afirmar que
Como ser determinado,
a existência é essencialmente ser para algo que é outro [...]. Deste ponto de
vista de existência como coisa exterior, a propriedade é para outras
exterioridades e liga-se à necessidade natural e à contingência que disso
resultam. Mas como existência da vontade essa sua existência para outrem é
existência para a vontade de outrem. Esta relação de vontade a vontade
constitui o terreno próprio e verdadeiro onde a liberdade tem uma existência. É
esta mediação que constitui o domínio do contrato, esta mediação que a
propriedade estabelece, não só de uma coisa com a minha vontade subjetiva, mas
também com outra vontade, havendo, portanto, uma vontade comum de posse.
(HEGEL, 1997, p.70).
A
propósito do contrato, a relação de propriedade se transforma em propriedade
comum; a relação que uma vontade livre tinha com uma coisa deixa de ser
arbitrária em certos aspectos e se torna objetiva. Com efeito, inicialmente uma
vontade se apropria arbitrariamente de determinadas coisas para satisfazer
necessidades e desejos. Mas, a partir do momento em que se realiza o contrato
com outra vontade, o contrato se transforma em uma relação objetiva, uma
instituição social, na qual o eu pode participar somente enquanto é reconhecido
como proprietário, reconhecendo, ele também, pelo menos uma pessoa, uma vontade
livre distinta, que possui a mesma condição. Em síntese
A mediação da vontade consiste em,
por um lado, abandonar uma propriedade (quer dizer: uma propriedade individual)
e, por outro lado, aceitar uma propriedade da mesma natureza (que, portanto,
pertence a outrem) e sobre isso a condição de coincidência entre uma volição
que só se manifesta quando outra volição está presente como contrapartida
(HEGEL, 1997, p. 71).
O
contrato é assim uma relação dinâmica que serve de mediação entre os momentos
da vontade idêntica de um proprietário, cuja posse é objetivada com a vontade
alheia. No contrato cada um dos concorrentes, mediante a vontade própria e a
vontade do outro, realizam sua liberdade objetivamente. Hegel defende que é
nessa dimensão que se pode realizar concretamente, mas só no campo do direito
abstrato, a consolidação da vontade livre. E dessa maneira, Hegel afirma que
Na estipulação reside
aquele aspecto da vontade, portanto da substância jurídica do contrato, perante
o qual a posse que se conserva enquanto o contrato não é executado apenas
constitui para si a exterioridade que só na estipulação é chamada a intervir. É
pela estipulação que abandono uma propriedade que passa a ser propriedade de um
outro e é por causa dela que o direito me obriga à imediata execução (HEGEL,
1997, p).
Em
suma, a realização objetiva da vontade livre começa com sua exterioridade na
apropriação de uma coisa, mas adquire sua completa realização com a relação
contratual realizada com outras vontades livres, contrato consolidado
juridicamente dentro da esfera do Direito abstrato.
5.
Conclusão
A
realização da vontade livre no Direito abstrato segue um caminho de superação,
perpassando do lado da abstração e subjetividade no indivíduo até sua
objetivação no espaço e no tempo com ações e determinações práticas. A
propriedade começa com o autoconhecimento do eu. A partir disso, a vontade do
eu precisa do domínio da natureza para afirmar sua existência exterior, momento
no qual se depara com a presença de uma outra vontade.
Assim sendo, dentro do sistema do direito,
a realização plena da liberdade da vontade só tem lugar na relação contratual
com vontades de outras pessoas portadoras mesma condição jurídica.
A filosofia jurídica hegeliana se apresenta
desse modo com o contrato social que é o campo próprio do exercício da
liberdade, cuja materialização está no Estado como um todo. Ao mesmo tempo, a
realização da vontade livre se transforma na concretude de ações exercidas
sobre uma propriedade comum no contrato social. Isto ocorre porquanto o contrato
social resulta compatível com a vontade alheia na busca de um objetivo comum.
Referências
CORDUA, Carla. Explicación
sucinta de la filosofia del derecho de Hegel. Santa Fe de Bogotá: Editorial
Temis. 1992.
HEGEL, G. W. F. Enciclopedia
de las Ciencias Filosóficas en Compendio. Madrid (España): Alianza
Editorial, S. A. 2005.
______. Princípios da filosofia do direito.
Tradução Orlando Vitorino. - São Paulo: Martins Fontes, 1997.
REALE, G;
ANTLSERI D. História da filosofia:
do romantismo ao empiriocriticismo. V. 5 / G. Reale; Tradução Ivo Storniolo. -
São Paulo: Paulus, 2005.
SPINOZA,
B. Ética demostrada à maneira dos
Geômetras. São Paulo: Martin Claret. 2002.
[1]
Aluno do primeiro semestre do curso de Filosofia do Centro Universitário
Salesiano de São Paulo (UNISAL) – Unidade Lorena.
[2] Princípios da Filosofia do Direito.
[3] Texto em espanhol: “[…] la idea es […] la totalidad que se desarrolla a sí
misma de las determinaciones y leyes propias del pensamiento, [totalidad] que
él se da a sí mismo […]”. Ver: HEGEL, G. W. F. Enciclopedia de las Ciencias Filosóficas en Compendio. Madrid (España):
Alianza Editorial, S. A. 2005. Pág. 125.
[4] Para saber mais
sobre a questão da liberdade e da “substância” em Spinoza, ver: SPINOZA, B. Ética demostrada à maneira dos Geométras.
São Paulo: Martin Claret. 2002.
[5] “La voluntad es, pues, un modo peculiar de pensamiento
capaz de volverse práctico y de convertirse en existencias espacio-temporales”.
Ver CORDURA, Carol. Explicación Sucinta
de la Filosofía del Derecho de Hegel. Santa Fe de Bogotá: Editorial Temis.
1992. Pág. 7.
[6] Texto em espanhol: “está en la unidad de su objetividad
y su idealidad o concepto, unidad que dentro de él está-siendo en sí y para sí
y que está produciéndose eternamente; es el espíritu en su verdad absoluta: el
espíritu absoluto”. Ver: HEGEL, G. W. F. Enciclopedia
de las Ciencias Filosóficas en Compendio. Madrid (España): Alianza
Editorial, S. A. 2005. Pág. 437
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