A amizade aristotélica como possível solução para a Crise de Relações do século XXI





INTRODUÇÃO

A sociedade atual vivencia uma crise relacional, principalmente as de âmbito comunitário em consequência da liquidez da sociedade e da virtualização das relações. Com efeito, essas duas situações provocam deturpações na concepção de pessoa, dentre elas, o individualismo que gera descompromisso com o outro.

Também está sendo vivenciada uma liquidez de conceitos. Segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), em sua obra Vida Líquida, a pós-modernidade não se apega a formas e, muito menos, permanece em suas estruturas por muito tempo, tudo é muito rápido e inconstante.

Por outro lado, no campo da filosofia, sempre é lembrada a figura emblemática do grande Aristóteles, também chamado o Estagirita, que escreveu no século IV a. C a obra Ética à Nicômaco com o objetivo de definir a felicidade que, para ele, é o sumo bem do homem. Porém, para se alcançar a felicidade é necessária à prática das virtudes e, dentre elas, o autor coloca em destaque a amizade (φιλία).

Sendo assim, perante o contexto da crise relacional na sociedade do século XXI, reclama a seguinte problemática: Qual é a contribuição de Aristóteles para vivenciar a virtude da amizade numa época de crise de relações?

Diante desse questionamento, em três momentos, a reflexão pretenderá buscar - por meio da análise do conceito de amizade e como ele se deturpou na pós-modernidade para que, posteriormente, seja averiguada uma possível solução para a problemática relacional que ronda os grupos e comunidades do atual contexto.


1. DA ÉTICA À NICÔMACO 

A Ética à Nicômaco foi escrita num contexto de um Aristóteles mais maduro, com um pensamento mais personalizado e sistemático. Seu objetivo é procurar definir o sumo bem do homem que é a felicidade, que consiste na plenitude das realizações que o ser humano pode fazer usando o seu intelecto.Em outras palavras, compreender que a felicidade que o homem tanto busca está na contemplação que gera ações concretas, ações essas que Aristóteles chama de virtude.

As virtudes são escolhas que geram equilíbrio e condiciona os princípios racionais do homem. Segundo o autor, são “uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática”. (ARISTÓTELES, 1987, p. 73) 

As virtudes são dividas em dois grupos fundamentais: virtudes éticas e virtudes dianoéticas. As virtudes éticas estão ligadas ao comportamento prático, isto é, nas ações que o ser humano comete no seu cotidiano. Por outro lado, as virtudes dianoéticas estão ligadas às capacidades intelectivas do ser humano, bem como o seu desenvolvimento e funcionamento. Sendo que, elas são fundamentais para o alcance da felicidade suprema, pois, conduz o homem ao ser divino, uma vez que, elas o levam à contemplação.

Com efeito, de todas as virtudes que são analisadas pelo Estagirita, a amizade ocupa um lugar de destaque, pois, para ele, ela se faz necessária para a que se haja felicidade.

1.1 A amizade na Ética à Nicômaco

Na Ética, Aristóteles dedica dois livros – VIII e IX – à temática da amizade. É notada, no princípio do livro VIII, a seguinte definição: “ela é uma virtude ou implica virtude, sendo, além disso, sumamente necessária à vida.” (ARISTÓTELES, 1987, p. 179). E só é necessária a vida porque ninguém optaria pela vida na ausência de amigos.

Para Aristóteles, existem três espécies de amizade: por causa de sua utilidade, por causa do prazer e por que é bom. A amizade enquanto utilidade, segundo o autor, “é agradável na medida em que despertam uma na outra a esperança de algum bem futuro.” (1987, p. 181). Nela, as pessoas convivem tendo como objeto de interesse aquilo que se pode oferecer.

A amizade enquanto prazer, nos diz o autor, é própria dos jovens, pois, “eles são guiados pela emoção e buscam acima de tudo o que lhes é agradável e o que têm imediatamente diante dos olhos; mas com o correr dos anos os seus prazeres tornam-se diferentes.” (ARISTÓTELES, 1987, p. 181). Os jovens também são afetuosos e amorosos, porém, são inconstantes em seus relacionamentos, pois, esse afeto e esse amor estão ligados à emoção, ao calor do momento.

Posteriormente, uma terceira forma de amizade que Aristóteles ainda analisa e conceitua será exposta: a amizade enquanto boa ou enquanto virtude. O autor vai chama-la de amizade perfeita.

2. A AMIZADE ENQUANTO VIRTUDE

Como foi dito anteriormente, dentre as formas de amizade está aquela que é boa ou virtude. Na Ética, ele a chama de amizade perfeita e diz que é a amizade própria de pessoas boas e virtuosas devido ao fato de que elas buscam somente o bem a si e ao outro por si mesmo: “A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins a virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos.” (ARISTÓTELES, 1987, p. 181). Ao contrário das outras duas já citadas anteriormente, a amizade enquanto virtude é perene, pois, aqueles que se relacionam, encontram coisas em comum que dão prazer. 

Contudo, o filósofo julga a amizade como virtude, pois encontra em si mesma a justiça, e é nesse contexto que se descortina a amizade civil e política. Todavia, a comunhão da sociedade e da concórdia são bases para a amizade e só se pode existir amizade se houver convivência. Segundo Lara (2009, p. 44), “é nessa tríade (amizade - justiça - felicidade) que identificamos o aspecto comunitário do bem.”

Quando se fala em aspecto comunitário, os olhares desse estudo se voltam para a realidade dos relacionamentos de amizade no contexto do século XXI, que está em crise. Com base no que já foi abordado, serão analisadas a amizade nos dias atuais e o que, de fato, é a crise de relações e a possível resposta a essa questão.

3. A AMIZADE NA ATUALIDADE: AS RELAÇÕES AFETIVAS NO SÉCULO XXI E A CRISE DE RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

A amizade na atualidade vive um processo de fragilidade, pois, as relações afetivas e comunitárias se liquefizeram e se tornaram relações descompromissadas. Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017), a sociedade está vivendo uma vida líquida que consiste numa impermanência de vida, nada se forma: “a vida liquida, assim como a sociedade liquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo.” (BAUMAN, 2007, p. 7).

Nesse contexto, as relações estão cada vez mais fragilizadas e inconstantes devido à facilidade de acesso das redes sociais na Internet, sendo assim, o objetivo de amizade modifica-se facilmente, algo muito parecido, senão, idêntico à amizade enquanto prazer que Aristóteles analisa e que foi citado anteriormente.

Também nesse contexto, se manifesta o individualismo que afeta profundamente um dos polos fundamentais da concepção de pessoa: a comunidade. A pessoa, segundo Mounier, “não se nutre autonomamente” (2004, p. 46), mas, que ela precisa se relacionar, interagir e comunicar com o outro.

Nesse processo, pode-se afirmar que o outro é a extensão do eu e que a pessoa se torna mais pessoa na proporção em que se oferece ao outro, isto é, “só existo na medida em que existo para os outros ou numa frase-limite: ser é amar” (MOUNIER, 2004, p.46), assim, o amor está intrinsecamente ligado à existência da pessoa.

Sendo que, a amizade é uma demonstração de amor de uma pessoa para a outra. Segundo Barthes, “ninguém tem vontade de falar de amor, se não for para alguém.” (1989, p. 65), por isso, não há possibilidade falar de amizade sem amor, pois, o amor é comunicação entre pessoas.

Contudo, essa sociedade que se liquefez e que vive motivações momentâneas passa por uma crise devido à virtualização das relações comunitárias que promove uma amizade sem bases sólidas, sem compromisso. Isso se dá pelo fato da ausência de características essenciais para que se aconteça uma boa relação, dentre elas, o companheirismo.

Segundo o Estagirita, “a amizade é parceria, e tal é um homem para si mesmo, tal é para o seu amigo; ora, para ele a consciência torna-se ativa quando eles convivem. Por isso, é natural que busquem o convívio.” (ARISTÓTELES, 1987, p. 214). Repare que, com essa estrutura em que a sociedade hodierna vivencia, a concepção de pessoa está deturpada, pois, são de sua natureza o convívio e a parceria.

De fato, a sociedade do século XXI está necessitada de retornar às origens do conceito de amizade, no caso em Aristóteles, pois ele propõe a vivência da amizade enquanto virtude que “é boa porque cresce com o companheirismo.” (1987, p. 215). Em última análise, só pelo companheirismo e pela convivência se é possível solucionar a crise relacional hodierna, pois, são através dessas posturas que se edificam bases sólidas e consistentes para relações mais saudáveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embasando no estudo da Ética de Aristóteles e, levando em consideração os conceitos de amizade, virtude e felicidade, infere-se que só será possível resolver o problema da crise relacional da sociedade hodierna quando a mesma retomar os valores do companheirismo, da convivência, do desinteresse, entre outros. 

Dessa forma, existe a possibilidade de promover o amor que gera comunicação e felicidade e esta que, como foi visto, é o sumo bem do ser humano. Entretanto, embora as redes sociais promovam conhecimento e relação entre pessoas, é fundamental que houvesse a valorização da conversa ‘presencial’ pois, ela favorece a convivência que humaniza.

Enfim, o mesmo homem que descobriu que pode formar novos amigos na mesma velocidade de um clique do computador precisa redescobrir os conceitos fundamentais de afeto e carinho que só é proporcionado por outro ser humano, afinal de contas, a melhor rede social que o homem pode frequentar é uma boa conversa cara a cara.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Metafísica; Poética. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. – São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores)

BAUMAN, Zygmund. Vida Liquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2007.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1989.

LARA, Renata de Oliveira. Amizade na Ética à Nicômaco. 2009, 90 p. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Filosofia) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2009.

MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Tradução de Vinícius Eduardo Alves. São Paulo: Centauro, 2004.



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